Seguirei o génio de Pessoa, recorrendo a “
um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender”. O objectivo é enunciar a diferença entre o povo português e japonês. Do recurso à interpretação de acontecimentos da História e à encenação de episódios, deduzirei oposições que reflictam a disparidade entre os dois povos.
Este é um exercício interminável, que evidentemente, generaliza. Mas de maneira a compreender os pormenores de excepção, que não serão referidos nesta análise, é conveniente ter uma ideia do todo. (Só depois de saber o que é o Impressionismo é que se entendem as pinceladas de Van Gogh).
Devo dar relevância à orientação cultural dos dois povos. Os portugueses, por fazerem parte da raça latina, possivelmente reagirão da mesma forma que espanhóis, brasileiros ou italianos nos episódios que narrarei em seguida. No entanto, existem comportamentos de exclusividade lusa que sobressaem aos dos latinos. Será esta proeminência portuguesa a base da contraposição ao povo japonês. Os nipónicos, por outro lado, representam uma colheita ímpar de seres humanos, que actua de forma singular. Apesar do Japão fazer parte do continente Asiático, o arquipélago e o continente seguem diferentes caminhos no estudo da antropologia.
Decidi redigir este texto por duas razões: a saliente, porque ainda não foi feito (se o foi, não tenho conhecimento); a consequente, pelo gozo de o escrever.
Atrevo-me a enfrentar o assunto sabendo que há personalidades mais conhecedoras desta temática, pelos anos de experiência vivida no Japão. Mas como do Japão levei um forte impulso na aprendizagem do que é a determinação e o atrevimento, aqui me atrevo, sem medo.
1. Começaremos então a viagem pela diferença entre lusos e nipónicos. E por iniciarmos a viagem, navegaremos de nau. Os primeiros ocidentais a chegarem ao arquipélago do Japão foram os portugueses. Nessa sua ânsia de descobrir, ou de expandir a fé ou o império, ou até de fugir, os portugueses ancoraram em todos os cantos do globo que não tem cantos: África do Sul, Índia, Brasil, Austrália.
O Japão, por seu lado, continua a ser o país do Mundo que mais tempo se isolou no seu mundo. Foi exactamente de 212 anos o período de enclausura ordenado pelo Shogunato. Neste período, o povo japonês não abandonou o território, nem isso lho era permitido. O contacto com o exterior resumia-se à presença restrita dos missionários europeus, numas ilhotas a Sul do arquipélago.
Esta é a primeira e mais notável diferença entre portugueses e japoneses: aqueles enfrentaram mares nunca dantes navegados, estes fecharam as suas portas.
A época do berço da globalização reflecte-se na cultura contemporânea de ambas as nações. Os portugueses seguem a sombra de Vasco da Gama em aventuras inusitadas pelo Mundo fora, nas quais se valem com mestria da sua ciência do desenrascanço.
Ao invés, os japoneses, que continuam isolados por milhões de gotas salgadas, viajam frequentemente em excursão, seguindo o guia, atentos ao esclarecimento histórico do Coliseu de Roma e da Torre Eiffel. As cidades onde se erguem estes monumentos são normalmente as primeiras a serem visitadas pelos turistas japoneses e para muitos dos poucos que já visitaram o exterior, o único conhecimento que têm de fora do seu país.
2. Logo no primeiro contacto com ocidentais os japoneses evidenciaram as suas hábeis capacidades de observação. Iniciaram com os portugueses a construção da fama que têm em copiar o que os outros fazem. Mais, em melhorá-lo para seu proveito.
Foi o que fizeram quando Fernão Mendes Pinto lhes apresentou a primeira arma de fogo que alguma vez haviam visto. A espingarda foi de pronto replicada em grandes quantidades, como é relatado na obra “Peregrinação”: “
O fervor deste apetite e curiosidade foi dali por diante que já quando nos dali partimos, que foi dali a cinco meses e meio, havia na terra passante de seiscentas espingardas.” Além de copiar a ferramenta que sentenciou o fim dos samurais, os japoneses aproveitaram para adaptar à sua culinária a novidade introduzida pelos portugueses de fritar peixe e vegetais, que é nos dias de hoje um dos mais conhecidos e apetitosos pratos da sua culinária: tempura.
Ora, que retiraram os portugueses da cultura japonesa? Maioritariamente deslumbre. Fernão Mendes Pinto e São Francisco Xavier foram dos primeiros a narrar as suas experiências de espanto. Mas é Wenceslau de Moraes, séculos mais tarde, que se revela como o exemplo mor da admiração passiva, aquilo a que Fernando Pessoa chama de “provincianismo português”. Wenceslau escreveu e só escreveu, limitando-se a exaltar o Japão, na senda preguiçosa e tão portuguesa de pasmar do que os outros fazem.
3. A metodologia de trabalho, que é o mesmo que dizer a metodologia de viver, revela-se, como veremos, de uma diferença atroz. Enquanto os japoneses preparam tudo ao detalhe, os portugueses seguem a filosofia laboral do “isso depois vê-se”.
Como é de calcular, em situações não esperadas, os portugueses desenvencilham-se como nenhum outro povo no Mundo. Precisamente por ser o povo que mais cria situações não esperadas. Ou seja, só por fazer do joelho a mesa de trabalho e deixar tudo para o último momento possível, é que têm imprevistos para resolver. E daí serem os mestres das soluções em cima da hora.
Os japoneses não atrasam as tarefas, pensam previamente nos hipotéticos problemas, criam um plano eficaz e seguem-se por esse plano. Ao eliminar a possibilidade de imprevistos, não têm de conjugar o verbo desenvencilhar.
4. Mas é da capacidade de improvisar que os portugueses abrem alas ao talento, ao imprevisto, àquilo a que o outro (e nem o próprio) não está à espera. Como a habilidade de Cristiano Ronaldo, de certo aperfeiçoada com treino, mas deixada desprendida para desembaraçar um momento.
Os japoneses, ao ter tudo planificado, não fazem o que não vem no plano. É este limite à irreverência que faz com que muitos comunicadores japoneses contra-cultura abandonem o seu país. São exemplos as artistas Yoko Ono e Yayoi Kusama.
Os japoneses são formados para não contestarem o sistema e se no sistema do menu não existe o produto que pretendem, nem sequer se atrevem em pensar solicitar o artigo. Nos cafés lusos improvisa-se uma bifana no pão, mesmo que não surja na lista.
5. Vejamos de seguida como os povos em estudo cuidam de dois conceitos que, inventados pelos humanos, são cada vez mais fundamentais na era da tecnologia: o tempo e o dinheiro.
Para relatar a divergência do tratamento do relógio, recorrerei a uma simples encenação: um jantar está marcado para as 20h por amigos japoneses, e outro, à mesma hora, por amigos portugueses.
Os participantes do jantar nipónico estão no local combinado às 19h55. Em caso de atraso, por dez minutos que sejam, de pronto os amigos japoneses enviam SMS de aviso pedindo muitas desculpas pelo ultraje de instantes perdidos. Nessa ocasião, quem chegou com dez minutos de atraso notificados, desculpa-se novamente envolvido em vergonha.
No jantar entre portugueses, o primeiro participante chega às 21h. E vai ter de esperar pelos outros. Às 21h30 começam a chegar aos pingos os restantes amigos. O que chegara uma hora depois do combinado, comenta: “Então isto são horas de chegar?”. Logo é refutado por uma voz esfomeada: “Oh, então se o jantar estava marcado para as 20h nunca cá está toda a gente antes das 22h”. De facto, este argumento revela um conhecimento da cultura portuguesa de grande pragmatismo. O amigo que chegou uma hora atrasado é que é o tolo.
E porque o tempo é dinheiro…
O motor que nos obriga a pagar para viver, é tratado no Japão, tal como o tempo, com muito cuidado e amparo. Nos estabelecimentos comerciais há um pequeno recipiente que serve de pombo-correio entre o cliente e o vendedor. No Japão é deselegante mostrar dinheiro em público ou desfrutar orgulhoso de ostentação.
Os portugueses, pelo contrário, tudo fazem para mostrar a pompa. Aliás, mesmo com menos poder de compra que os japoneses, conjecturo em qual dos países será superior o número de carros topo de gama por família. É importante para muitos portuguesinhos ter o melhor carro entre os vizinhos.
Ainda no cerne do cifrão, criemos outro episódio simples: num bar, é solicitada uma cerveja.
Estamos no Japão, a bebida custa 200 ienes e o cliente só tem 199. O vendedor não pode negociar o seu produto pois é-lhe tão claro como 1+1 ser 2: a cerveja está à venda por 200, e não 199. Logo, falta um iene.
No bar português, a cerveja custa dois euros. O cliente tem dois euros e trinta cêntimos, mas esconde uma moeda de cinquenta cêntimos no bolso. A ver se pega. “Só tem 1.80?”, diz o dono do bar. “Não faz mal, fica assim, paga para a próxima.”
6. Se o caro leitor chegou até estas linhas é porque o seu interesse demonstrou paciência. Comporta-se portanto como um japonês.
A expressão japonesa “gaman suru” significa suportar, ter a capacidade de sofrer, e sobretudo, de sofrer sozinho. A paciência nipónica até pode esgotar-se no interior, mas não salta pra fora.
Os japoneses esperam pacientes na fila para o restaurante. Sabem que vão ter a recompensa de estar no restaurante que está na moda. Os portugueses vão ao restaurante do lado pois a impaciência não os permite suportar o fastio de esperar. Pelo caminho bufam e vociferam, desabafam o seu balão de inquietação.
7. Encontramo-nos agora num elevador.Na viagem até ao 12º andar estão duas pessoas que não se conhecem. Os portugueses sentem o momento como um incómodo período de silêncio e quebram o clima falando precisamente sobre o clima. “Está frio hoje mas parece que amanhã a temperatura vai subir.”
No elevador do oriente, os japoneses gozam o silêncio e respeitam os respectivos espaços de sossego. Não têm nada para dizer um ao outro, por isso não inventam conversas em que nada de novo se acrescenta.
Os portugueses verbalizam sempre que podem, mesmo sobre aquilo que não dominam (algo que se tornou famigerado na expressão “mandar bitaites”).
Pelo contrário, os japoneses, quando não sabem de um assunto, não falam. E sabem repousar no astuto lugar do silêncio.
8. Continuemos a seguir as pessoas que iam no elevador. São homens de negócios que vão para uma importante reunião de trabalho. Os senhores doutores portugueses estão atrasados. Suzuki-san e Sakamoto-san apresentam-se cordialmente antes da hora estipulada.
Na reunião japonesa todos os nomes serão sucedidos de “san”, o instrumento de comunicação no idioma japonês que significa respeito. O sufixo é usado também com as profissões (pescador-san, médico-san). Assim, qualquer pessoa é tratada por san, independente do currículo académico ou estatuto social.
Em Portugal o instrumento de comunicação está antes do nome e muitas vezes substitui o próprio nome. O título de Senhor Doutor, Doutor ou abreviadamente,
Sôtor, é também independente do currículo académico ou estatuto social. Qualquer pessoa é Doutor. Até o médico é Doutor.
9. No penúltimo ponto desta exposição referir-me-ei a um fenómeno congénito à humanidade e pelo qual presente ao longo de toda a sua História: o conflito.A história de guerra internacional do Japão cessou após a 2ª Grande Guerra, limitando-se presentemente ao actuar doméstico dos senhores de negro, a máfia yakuza. A yakuza é a única organização que conserva a lei marcial da era dos samurais. No dia-a-dia, o povo japonês evita todo e qualquer confronto, recorrendo uma vez mais ao gaman suru: aguenta o seu próprio instinto animal. Pede desculpa, ri-se ligeiramente e abandona o local de iminente discussão.
Se, como foi exemplo atrás, os portugueses abandonam uma fila para um restaurante a bufar e a vociferar, é escusado relatar como reagem em locais de possíveis conflitos.
Por isso, para concluir, servir-me-ei de um local não conflituoso para provar a distância entre portugueses e japoneses em relação ao conflito. O cenário é um meio de transporte, o comboio. Alguém observa curioso os representantes dos nativos em estudo. O olhar incómodo provoca reacções: os portugueses exclamam: “Opá tás a olhar pra onde pá?”; os japoneses fecham os olhos e descansam.
10. Como curiosidade, e porque este é o décimo e último termo de comparação, convido o leitor a verificar como é que os povos que acabam de ser caricaturados usam os dedos para contar até dez.Os portugueses contam até dez começando no indicador da mão direita e acabando no polegar da mão esquerda. Usam duas mãos para contar até dez.
Os japoneses usam uma mão para contar até dez. Iniciam a contagem com a mão aberta, e começando no polegar até ao mindinho fecham a mão e contam cinco; o mindinho volta a abrir a mão até ao polegar e chegam ao fim da contagem até dez. E eu cheguei ao fim da demonstração da diferença entre portugueses e japoneses.