quarta-feira, setembro 27, 2006

Peripécias de viagem - Hokkaido

Talvez não seja bem-vindo pois não ouço o habitual cumprimento: Irashaimasse!
Sou estrangeiro e tratam-me com uma diferença de indiferença. Mas entro no restaurante de sushi com a mesma confiança da estreia.

Outro saqué, por favor. O chef lá se apercebe que me aventuro sozinho pela cultura nipónica. Ao meu lado, três japoneses deliciam-se com sushi e sashimi. Algo se mexe numa das tábuas de madeira onde é servida a refeição. Não resisto: “Sore wa nan desu ka?”
Isto? Lula! Ikaga desu ka? A pergunta é retoricamente gentil. Oferecem-me lula viva e eu não me faço esquisito.
A luta é entre os meus molares e os movimentos moluscos. Mas de surpresa vencem as papilas gustativas.

terça-feira, setembro 26, 2006

Seishun 18-Kippu II - Hokkaido

Completo o objectivo de chegar a Hokkaido em dois dias ferroviários. Na ilha do Norte sente-se na brisa a vizinhança da Sibéria. A paisagem altera-se. Hokkaido é um microcosmo do mundo nipónico, um paraíso de natureza intacta.

A efemeridade da estadia impele-me a pressagiar um regresso. Galopei de bicicleta mas não passeei na neve dos vulcões. Provei o peixe fresco, mas não apreciei o Festival do Gelo. Voltarei para ver as raposas sob a protecção natural e conhecer a minoria Ainu, a única do Japão. Visitarei as pequenas ilhas junto à costa...

Leio o Japan Times pela manhã: “Japanese Fisherman Killed by Russian Patrol”. Perdura desde a 2ª Grande Guerra o litígio territorial entre Japão e Rússia sobre a miudeza deserta das ilhas Habomai.
Parece que é o único local onde o mar é suficientemente profundo para a travessia submarina.
Deito o jornal ao lixo e sigo para o Parque Nacional Onuma. Prefiro ver a realidade da Mãe-Natureza que ler a irrealidade da natureza do Homem.

Mais fotos de Hokkaido, aqui.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Seishun 18-Kippu I

Comando-me para a frente. Procuro o meu Norte, vasculho o Norte do Japão. Nos feriados de Agosto decido atirar o corpo contra a parede da inércia. Aproveito os dias, torno-os diferentes, logo, maiores. Estico o meu tempo na fita quilométrica da aventura.

Após comprar o “Bilhete Juventude 18”, esperam-me cinco dias de deslocações em comboios regionais. É a forma mais acessível à carteira para viajar no Japão: 16 euros cada dia. No primeiro dia gasto um euro por hora. Demoro dezasseis horas para chegar a Akita, a 600km de Tóquio.

Não tenho pressa. No lento deslizar dos carris, descongelo a minha vontade de observar a paisagem do Nippon que ainda resiste à detonação da urbe. Enquanto serpenteio a costa espinhosa de rochedos, fundo-me entre o verde dos campos de arroz e o azul que dissolvo do céu à profundeza do mar.
Em Akita dormirei em qualquer canto da Estação. Quero usufruir dos lençóis de rua do país mais seguro do Mundo. Acabo por descansar num banco em forma de pé gigante. Logo hoje, que dei um passo de gigante na vida pé ante pé.

Paisagens sob carris, aqui.

terça-feira, setembro 19, 2006

Mais alto na periferia

A Chinatown não é a única razão que me faz viajar até Yokohama. Ainda não fui lá, explico a mim próprio.

Esta cidade da periferia de Tóquio tem quase o dobro dos habitantes da Grande Lisboa. É como se o Porto estivesse à saída da 2ª Circular, numa proporção nipónica. Yokohama é a segunda maior cidade. E a que tem o prédio mais alto. O Landmark Tower orgulha-se de ter o elevador mais rápido do Mundo. A Chinatown é a maior do Japão.
Desencubro algo de português nesta tendência de Yokohama para facilitar tudo com o superlativo relativo de superioridade.

Pouco depois de chegar, entro na China. Após o período feudal Edo, em que o Japão se isolou do Mundo, Yokohama abriu a porta do contacto internacional: o Porto foi inaugurado em 1859. Um século depois, a Chinatown era oficializada.
Predomina o vermelho. O comércio é diferente, os chineses empurram os produtos aos clientes. Almoço rodeado de dragões.

Volto ao Japão passeando no cais, e estranho o espaço que tenho para caminhar. Não há obstáculos no jogo dos peões. O oceano brilha-me nos olhos recordações das cores de Lisboa.

Subo no elevador mais rápido: 45Km\h de zumbido nos ouvidos. Chego ao 69º andar excitado com a potência da altura: vejo Tóquio ao longe. É invisível a fronteira do inchaço urbano.
Espero o pôr-do-sol, frustrado por não poder ver o cume do Monte Fuji, o maior do Japão.
No prédio mais alto sou o mais português dos que partilham este planar estático.

Mais fotografias, aqui.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Imagens narrativas III - Golos de Portugal

Quatro letras apenas esclarecem Portugal: Figo. É a palavra-chave do meu país aos olhos afiados de curiosidade.
Os povos do Mundo compreendem o idioma do futebol. Acontecimento recente, as fintas fenomenais e os abdominais de Cristiano Ronaldo proeminam de fama.
Por fim, não há nenhum japonês que desconheça São Francisco Xavier, marcador de golos de cristianização nas terras onde o Sol nasce.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Retrato nas brasas de areia

Encontros em sintonia nas ruas do mundo, gostos comummente circunscritos aos trilhos do ser-se humano, partilhar a arte das ideias, as frustrações do sistema... amuralham a força da sinceridade. A amizade com Naoko é a manifestação aforística do acidente da vida.

Acompanho a sua miscelânea Coreia-Japão na praia de Chigasaki, em busca de modelos para a sua revista. Invejo-lhe a profissão, embora não a pudesse desempenhar: o idioma não é um obstáculo para a motivação de Naoko, que escuta um oásico consentimento em dezenas de rejeições pela timidez.

A cada passo seu nas brasas de areia, com a aragem do oceano a reclamar pelo corpo escaldado, desvendo artimanhas de retrato, retenho a genica do caminhar vulcânico.
Nunca me disse, mas eu descortino facilmente: o que Naoko mais gosta é de viver.

Numa praia japonesa, aqui.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Orquestra de religiões

A religião permanece uma página em branco no meu caderno das conclusões.
Os braços de Shiva, a visão de Buda, um objecto-Deus xintoísta intrigam-me como a lenda do Santo Graal: “Se Deus quiser!”, mas qual deles? Entretanto vou sendo deus de mim próprio em letra minúscula.

A grande maioria dos japoneses aplica à religião, como a tudo, uma prática absoluta. Visitam templos xintoístas uma vez por ano para desenlaçar um Cupido desconhecido, casam em igrejas cristãs porque o cinema invade o sonho do vestido de noiva, despedem-se das almas em lutos budistas. A história de harmonia xinto-budista do Japão faz emergir ao meu dicionário: sincretismo.

Se um dia estiver certo que as igrejas não são empresas, também acreditarei em vários deuses. Até lá, vou preferindo estar sentado de olhos fechados que esventrado de pés furados.


Mais fotos aqui.