sexta-feira, março 21, 2008

FIM - Owari!

Hai Shimarimasu!
No Japão aprendi que enquanto não se sabe como fazer muito bem, não se faz. Porventura isto não servirá como uma desculpa para justificar o hiato deste blog: também aprendi que as desculpas, sinceras ou não, não servem para nada.
Hilariante: termina o hiato, e termina o blog. “Hai Shimarimasu!” é o aviso docilmente eficaz que as portas do metro vão fechar. As portas deste blogue fechar-se-ão com este texto, a carruagem continuará em movimento.

Não há nada que a cultura japonesa não tenha feito escrever. À parte a descrição das vivências gastronómicas em izakayas, madrugadas em Love Hotels, perfil psicológico de personagens, aulas de Japonês, narrativas urbanas, ou pequenas expedições solitárias, tenho consciência que neste espaço já disse sobre o Japão tudo o que tenho a oferecer à interpretação.

Mantenho-me numa liberdade condicional, preso fora do Japão. O fantasma do Tiagosan continua em Tóquio preso fora de mim. Quero voltar, quero escrever o epílogo que me negaram. Quero voltar, mas não quero ficar. Ainda não abandonei a virtude de abandonar.

Um casamento a pedido da conveniência, uma bolsa de aperfeiçoamento artístico, ou um acto de oxigenação de consciência por parte de um empregador, fazem de mim um molde de um carimbo burocrático. Em Julho haverá novidades. Até lá ronha o tempo como uma lesma. Se a novidade for um pesadelo, não será pesadelo. Apesar de quando lá estamos parecer, o mundo não é o Japão.


Lições de um choque cultural
1. Todos os dias aprendemos com todos. É sempre possível melhorar, porque a perfeição existe: perfeição é tentar atingir o seu lugar inatingível. Exigir dos outros o mesmo que exigimos de nós.

2. Pensar antes de fazer. A espontaneidade é a forma de aprender com os erros.
Ser-se preciso, até no vai-não-vai.

3. Não somos escravos das emoções, é o vice-versa. A disciplina de controlar o descontrolo. Paciência é saber aproveitar os instantes impacientes. Para um dia se ser, é-se hoje.

4. “Sou do tamanho do que vejo”. Necessário é esticar a percepção e abafar preconceitos. Abrir, ler, observar, mudar, apagar.

5. A diferença entre as pessoas serem ilhas ou serem gotas. Ocidentais escolhem o oriente como orientais escolhem o ocidente. Os rebeldes não se acomodam. Os rebeldes japoneses não se acomodam: saem, ou do país ou da vida.

6. Tagarelar quebra a respiração. Não respiramos, não existimos. Basta de achar que sabemos. Não sabemos, ouvimos! O objectivo é perceber que nunca saberemos.

7. A fachada racional de encobrir a ferrugem dos alicerces emocionais ou o desabafo desanuviante de entornar a gramática, ambos sofrem. A reverência da obediência ou a irreverência da desobediência, ambos sofrem.

8. A saudade, métrica do coração português, é suicida: mata-se a si própria. É uma ilusão passageira. É a psicose brumosa de que algo falta para vir. Até se ver que não vem.

9. O relativismo é protagonista no teatro da existência. As coisas não são, os sabores não são, os valores não são, a moral não é. Nada é, tudo nos parece.

10. Somos onde estamos. É nossa essência a adaptação.
O erro de achar que a felicidade está do outro lado: o lado onde estamos é sempre o nosso lado.

11. O Japão alumiou o acidente que sou. Arigatou Nippon.


O Efeito
Foi no Japão que vi o sol nascer. Consegui a independência económica, a única que ainda há para a ver. Transformei-me num samuraizinho tenrinho como sashimi, tornei-me o gajo que viveu dois anos no Japão, entranhei-me na overdose de japonesismo.

Num bonsai vê-se o Japão: o bonsai é uma planta que não lhe permitem ser árvore; não cresce; deforma até que se conforma; suporta viver a gotas de humanidade; é uma harmonia sádica de encanto.
Não fui educado como um bonsai. Cresci silvestre, no meio dos mal-me-queres do meu país. Mas agora o bonsai não sai de mim. Perde-se a voz, esteriliza-se as emoções.

O Japão é um mergulho.

Exercício de salve-se quem puder psicológico, vive-se uma compressão humana incompreensível, percorremos em casulos parados no trânsito uma neblina de identidades, que resiste a questionar; os corpos não tocam, os sentimentos não chocam, o olhar evade-se para evitar que se perceba que mente. É um haraquiri mental constante, vivido na efemeridade da transição, preenchido de solidão.
Estranho os porquês de necessitar regressar. Persegue-me o antes e depois. Tudo mudou. Sinto o Efeito Nipónico.

FIM (Owari!)

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Os pássaros

Os japoneses não conseguem perceber porque é que os cães rosnam uns aos outros fora do Japão. É preciso ver, ver que os animais são alunos atentos do Homem. Daí os macaquinhos de imitação. Logo, apesar de em Tóquio não haver macacos à solta, se o olhar do Homem encarar o estudo da Etologia, é possível que reveja nos animais um tipo de ser humano transformado em macaquinhos de imitação que imitam seres humanos. No Japão a harmonia pressupõe a cópia.

Na selva de Tóquio não há leões à solta. Nem existe a praga da quantidade de pombos com dificuldades de contenção rectal. O que anda à solta em Tóquio é o bicho negro de bico arrogante, essa mancha escura de olhar afiado, a malvadez corpórea à escala da grande metrópole, na qual Hitchcock se inspirou para exaltar o tema do medo. Os corvos é que são os pássaros. É preciso ter-lhes muito respeitinho, que eles sabem quando estamos a olhar para eles. E olham-nos sempre desconfiados quando estamos a olhar para eles. Até há quem sofra de medriquice aguda – uma doença do foro psicológico com auto-cura – e desvie a sua rota para evitar o olhar penetrante do corvo gigante. Eles atacam mesmo. Nunca mais me esquecerei da forma como um se vingou de eu lhe tirar uma fotografia: deixou o poiso de um cabo eléctrico para fazer um voo rasante pela minha cabeça. Percebi bem o que passarão queria dizer.
E são grandes, feios e porcos. Os corvos são porcos: é nesta mistura de animais, nesta mistura do mesmo, que actua Tóquio.

Assenta-lhes tão bem o negro: são eles que nos lembram desta aparência de beleza, desta artificialidade estéril, desta vontade formatada de educação exterior; o corvo está ali, a remexer o lixo, grasnando, a avisar que tudo é falso.
É o instrumento principal da banda-sonora da cidade. Crocitam, grasnam, craaa, craaa, corvejam, estão sempre por ali, sagazes como…corvos.

No Parque Yoyogi reside uma comunidade de dezenas de milhares de espécimes. Atacam a produção de lixo constante do bairro de Shibuya, enquanto os sacos de plástico estão na rua, de madrugada. O dia recomeça, e o stress urbano esconde-se no dormitar dos passageiros do metro. Há tensão camuflada, como há entre as pessoas e os corvos. Embora não se toquem nem se falem, há ali algo por dizer: o corpo que se comprime, que se contém, põe-se em posição, de disciplina por parte do bicho, de sobrevivência por parte do corvo.

As políticas anunciam a gradual exterminação dos corvos. Mas Tóquio continuará eterna selva urbana. Os pinguins do servir capitalista, os gatos tão japoneses, doninhas em plena cidade, ratazanas submarinas, colegiais e Elvis domingueiros, trajes de Harajuku e ocidentais e, por cima de tudo isto, com uma panorâmica única, interpretando à sua maneira, sob a capa preta das interpretações, Os pássaros.


segunda-feira, dezembro 03, 2007

(De regresso…) O regresso do País Paradoxo

1 Voltemos à saga da contradição: em quase dois anos de Japão, só vi um beijo dado em público: um casal de americanos, muitos sakés depois, a expor o seu amor-ou-lá-o-que-era-aquilo, provocando reacções de espanto nos japoneses transeuntes, que se riam da gratuitidade da performance. (Às vezes há uns adolescentes na estação de Shibuya, a trocar muito secretamente uns ténues encostares de lábios no meio da confusão - que nem se pode considerar beijo, e que só a bisbilhotice de ocidentais como eu e a omnipresença das câmaras de vídeo podem captar).
Ninguém se toca para dizer olá ou adeus, mas nas horas de ponta do metro ou comboio os corpos esmagam-se uns contra os outros. Ora, não há beijinho nem abraço mas há esmagadela com muito amor e apertinho.

2 É famosa a formalidade japonesa. Desculpas depois de obrigados, obrigados seguidos de por favores, respeita-se mais a etiqueta do que o próximo. Até que o álcool começa a fazer efeito e a formalidade fica de ressaca: é ver os salarymen aos ziguezagues pela estação de comboio, até que se deitam no chão e adormecem, sem deixar antes de vomitar em plena plataforma.

3 Os coreanos falam bem inglês, os chineses também, os vietnamitas não sei mas até os filipinos falam e bem. Os japoneses não. Ainda não. As expressões inglesas adaptadas como biru (beer), boru (ball), ou toire (toilet) são exemplos comuns da dificuldade dos japoneses em pronunciar consoantes isoladas. Os japoneses falam às sílabas. O que lhes dificulta a aprendizagem do inglês e, ao saberem que não falam bem, por timidez não falam.
Mas usam o inglês no desporto. De repente e sem que eu encontre explicação, perdem a timidez à volta de um bola e todos falam inglês: naisu pasu; senkyu; rasto purei; gudo shoto.
E eu começo a falar inglês às sílabas também.

4 O Japão é seguramente um dos países mais seguros do mundo. Tóquio é de certeza a mais segura das grandes metrópoles mundiais. (Só em caso de tufão ou terramoto é que será difícil segurar-se.)
No entanto, a maior rede de máfia do mundo é japonesa, a yakuza.

5 Não há perigo para o cidadão, é possível andar na rua à noite em qualquer área, as crianças andam sozinhas, as senhoras e os idosos também, não se vê delinquência, toxicodependência, nem reacções alcoólicas. Mas, e no Japão há sempre um mas, quando as pessoas se despedem dizem “kiotsukete kudasai”, toma cuidado por favor.

6 Songoku, porque é que tens os olhos tão grandes? Porque é que os personagens manga e anime têm os olhos tão grandes, se o manga e o anime nasceram no Japão e os olhos dos seus criadores, são... como dizer sem usar a expressão “em bico”…, asiáticos, ou seja, pequenos?

Aceite o paradoxal e desfrute o Japão, desfrute a vida. Existe contradição na busca de explicação das contradições, que eu não vou explicar nesta frase e assim até parece que me estou a contradizer, o que não faz mal nenhum: se o Japão se contradiz, quem sou eu para não me contradizer?
Se nem sabemos porque vivemos e onde vivemos, viver, só por si, é absurdo. O inexplicável faz parte da existência.
O mundo é uma rede de paradoxos, se abrir bem os olhos pode vê-los em qualquer lado. A diferença entre o Mundo e o Japão é que para ver paradoxos no Japão nem é preciso abrir os olhos. (Que é outro paradoxo.)

quarta-feira, novembro 21, 2007

Tudo parece diferente

Nesta vida de negocios, em que nao passa um dia em que nao estejamos na posicao de cliente, as chatices pessoais podem nao ser inevitaveis, mas, no Japao, as chatices que ocorrem quando somos clientes sao, de todo, evitadas. Varios episodios sudesteasiaticos provam a minha inadaptacao a culturas que antes do efeito niponico me eram naturais.

Chego ao restaurante esfomeado. Preciso de uma malga de arroz para reajustar o QI. (Na Asia dao-nos sempre o arroz). Avanco pelo restaurante, escolho um lugar longe do ar condicionado, e sento-me. Ninguem me da atencao. A cozinheira comove-se com o desenlace da telenovela, a empregada folheia a revista, o empregado segura a cabeca contra a parede dos sonhos.

"Isto era impossivel acontecer no Japao!" e um dos pensamentos que mais desliza no para-brisas do meu cerebro. Tenho de avisar as pessoas que querem fazer lucro comigo que estou ali e lhes posso proporcionar esse lucro; tenho de pedir o menu; solicitar um copo com agua; e no fim, de barriga cheia pronta para a passeata, tenho de esperar que percebam que eu quero pagar.

O que me vale e que no Japao aprendi a ser (mais) paciente.

Na terra do Sol Nascente nao e preciso pedir o menu; nao e preciso pedir um copo com agua; nunca se espera para pagar. O menu esta em cima da mesa ou a vista de todos, espalhado pelas paredes do restaurante; um copo com agua fresca e a normal oferta de boas-vindas; se pagar para viver e um ultraje para o ser humano, esperar para pagar e o ultraje para o cliente. E no Japao o cliente e um ser divino, tratado de forma impessoal: a unica forma de evitar a solicitacao do livro de reclamacoes. (Nem estou certo da existencia desse livro).

Nao ha empregados com maus humores ou sindromas de preguica, nao ha trabalhadores atentos ao telemovel ou a televisao, nao ha… pessoas do outro lado do balcao. Sao formados para funcionar como maquinas. E as maquinas ate nos vencem a jogar xadrez…

Os empregados do hotel em que estou hospedado querem saber como prosseguem os meus estudos de tagalog. Tratam-me por Tiago; como um amigo. Param o trabalho para falar comigo. Ja nao sou cliente, passei a fronteira do profissional para o pessoal. Eu adoro passar esta fronteira: nunca pago taxas aldandegarias nem tenho de mostrar o passaporte. Mas, no momento em que algo acontece que sinto que deva reclamar, a barreira da amizade interpoe-se: "Entao Tiago, relaxe, somos amigos".

Agora entendo a forma robotizada com que somos atendidos no Japao. Em trabalho nao deve haver tempo para conversas extra-trabalho, logo nao ha relacao pessoal. Talvez so o Japao o consiga a nivel nacional.

O Japao nunca mistura nada. Nao ha jogo de cintura nem sorrisos francos. O que e e o que e. Negocio e negocio. O cliente e Deus. Conversa e conversa. Amigos sao amigos. Fim e fim.

quarta-feira, outubro 17, 2007

O maior assassino da Historia da Humanidade

(pontuacao... paciencia p.f.)


E tido como dado assente que o maior assassino da Historia da Humanidade usava bigodinho ao meio. Serio caso clinico, o Sr. Adolfo, no seu delirio ariano, achava-se no direito de moldar as mentes das suas gentes para gasificar seres humanos por nao considerar que estes eram dignos de viver, quer pela cor da pele, o tamanho do cranio, o local de nascimento ou religiao.


Admito que julgar e um mexerico cruel, e mais o e julgar quem matou mais, quem foi mais longe nas atrocidades, nas ilusoes das mentalidades. Apenas pretendo expor a Historia, a verdade.
E a verdade e que se a Gestapo cometeu crimes contra a Humanidade, o Exercito Imperial Japones cometeu a dobrar.

O Japao manchou a historia do sec. XX da maioria dos paises Asiaticos. Apos o termino da enclausura ao arquipelago subjugada as ordens do Shogunato, o novo Imperio procurou alargar o seu territorio. O que o Japao fez, foi, no fundo, uma mera copia dos movimentos ja efectuados em epocas passadas pelas restantes potencias internacionais.

Acreditanto que o solo japonês era sagrado, que nao merecia a presenca dos barbaros forasteiros, “inferiores a sua raça”, lancaram-se ao exterior, navegaram para o horror: Guerra Sino-Japonesa, Guerra Russa-Japonesa, Primeira e Segunda Grandes Guerras. Alem dos territorios referidos, China e Russia, o Japao dizimou inocentes – civis e militares (os militares nao sao tambem inocentes?) – nos territorios da Coreia, Filipinas, Indonesia, Mianmar, Singapura, Hong-Kong e Malasia.

O Massacre de Nanking e um exemplo documentado do leque de insensibilidades: experiencias em corpos humanos, enterro de pessoas vivas, tortura de prisioneiros de guerra, canibalismo, trabalho forcado, violacoes.
Palavras do historiador C. Johnson: Podera nao fazer sentido tentar definir qual foi o agressor mais cruel da 2GGuerra, se o Imperialismo Japones, se o Nazismo. Ambas as nacoes destruiram os paises que conquistaram numa dimensao monumental; no entanto, as barbaridades cometidas pelo Japao foram mais, e durante um periodo maior, que as dos Nazis. Ambos assassinaram e escravizaram milhoes, exploraram-nos como trabalhadores forcados – e no caso dos japoneses, como prostitutas forcadas para as tropas da linha da frente.

Uma das razoes que explica o comportamento selvatico das tropas niponicas foi o tratamento extremo imposto durante a formacao militar. Tal tratamento incluia uma lavagem cerebral. Os soldados japoneses passavam a acreditar que o inimigo era um barbaro que iria violar as suas familias e que mataria todos os prisioneiros de guerra. Para o soldado niponico era uma honra morrer pelo Imperador, como para o samurai era uma vergonha nao morrer pelo seu amo.
Esta ideia fabricada nas mentes de muitos jovens japoneses incitou a morte de muitos deles. Os Kamikaze, como ja referi neste espaco - nao eram suicidas mas sim vitimas da obediencia; por outro lado, milhares de soldados da infantaria suicidavam-se antes de serem capturados – e assim poderem ser salvos da demencia – pelos soldados americanos ou asiaticos. E facil concluir, mas nao devo deixar de resumir, que isto significa que o Exercito Imperial Japones ordenava as suas tropas a morte do inimigo, e ainda matava as suas proprias tropas.

Obviamente que o sentimento de remorso percorrera durante eras as gentes do Japao. Ha, pelo mundo fora, sobreviventes da Segunda Grande Guerra. Nao foi ha assim tanto tempo. E e admiravel que num pais que tem no seu curriculo recente este perfil de violencia, se vive actualmente numa harmonia inimaginavel comparativamente a outros lugares que nunca fizeram parte de guerra entre nacoes.
Pede-se muitas desculpas pelo vexame japones no sec. XX, pede-se muitas desculpas, pede-se sempre desculpas. Acho possivel que este repetitivo sentimento de culpa do Japao contemporaneo tenha sido em parte desencadeado pela imagem deixada pelos infames crimes de Guerra na consciencia moral do povo japones.

Mas nao se deixe enganar quem le estas linhas, pois nao e minha intencao concluir desta exposicao que o maior chacinador da Historia foi o Imperio Japones. Nao se deixe turvar pelos preconceitos. Eu ajudo: some-se as centenas de anos de perseguicao heretica e inquisicao presentes na cronologia da dita Humanidade, e nao se espante em descobrir que o maior assassino da Historia foi a Igreja Crista.
Vil ironia, pois a ironia e quase sempre negra, de a cruz crista, onde esperou a morte Jesus Cristo, se ter tornado um simbolo armado, um culto de opressao psicologica. E que com a crucificacao de Jesus Cristo, morreu tambem um dos ensinamentos que o mesmo defendia: Não matarás.

terça-feira, outubro 16, 2007

A multiplicidade do Hai

(ao telefone)

Moxi-moxi? Estou sim?
Ha, hai! Ah, ola!
Hai... Sim...
(pausa)
Hai. Estou a ouvir.
(pausa)
Hai? O que?
Hai, hai. Ah, ok, ok.
Hai! Entendi.
Haaaai. Adeus, vou desligar.

sábado, outubro 13, 2007

De outra perspectiva

(nada a fazer em relacao a pontuacao...)

Vizinho do arquipelago japones, tomo nota mais facilmente das diferencas descomunais que existem entre o Japao e a Asia, entre o Japao e o Mundo.
Nessas diferencas, obviamente, existem vantagens e desvantagens.
As vantagens sao todas as situacoes que me recalcam a infancia. Volto a ter a oportunidade de fazer amigos em poucos instantes, de saber se a pessoa gosta de mim ou se nao esta contente por me ver, de ver em cada farda uma pessoa, de entrar no café e ver a empregada a cantarolar a musica na radio; de poder comer ao ar livre; de me fazerem perguntas porque querem saber as respostas; de brincar com as criancas; de voltar a entender o que se passa a minha volta; de voltar a sentir o que se passa a minha volta. Enfim, volto a ter aquilo que me e natural, aquilo em que nasci. (porque os filipinos sao os latinos da Asia)

As desvantagens, tal como as vantagens, sao tambem muitas e gritantes. Concentrar-me-ei em duas delas, sob o tema da disciplina.

Principalmente nas cidades de Osaka e Toquio, ha um numero de muitos zeros de vagabundos, moradores de rua, ou outro eufemismo qualquer. Mas no Japao estas pessoas nao mendigam. Nao estendem a mao. Porque da mesma forma que nao querem ser incomodados enquanto leem os seus livros ou varrem o seu espaco de chao, tambem nao incomodam os transeuntes com o maior acto de humilhacao perante o capitalismo.
(Nas Filipinas, so durante a estadia na miseria da capital e que me pedem dinheiro. Eu digo sempre que nao. Uma moeda, duas moedas: se nao lhas dou nao morrem de fome; se lhas dou a vida de rua continua. Mendigar nao os tira de onde estao. E os vagabundos japoneses sabem-no.)
Por outro lado, e sem acreditar que esteja obrigatoriamente ligado ao sub-desenvolvimento, esta a questao do lixo. Um dos gestos que mais me surpreende sempre que deixei o territorio japones e ver pessoas a deitar lixo para o chao. O Japao e dos paises que mais lixo produz, mas os seus residentes colocam-no no lugar devido. E algo que se tornou tao natural para mim que me esquecera que muitos paises do mundo se parecem uma grande lixeira. E porque? Nao e porque nao haja caixotes do lixo, porque no Japao tambem nao os ha! E por falta de disciplina. E a disciplina nasce na educacao
(as criancas japonesas sofrem... mas por sofrer desde rebentos, suportam mais no futuro)

Antes achava que nao valia a pena lutar contra o flagelo do lixo. Que era um esforco inglorio. Pensava deste modo: se eu me preocupar com o lixo, mas se mais ninguem se preocupar com o lixo, o mundo vai continuar sujo.
Ha uns anos atras, mudei de ideias: ha sempre tempo de mudar.
Nao quero saber dos outros, ponho o lixo no lugar (ponho sempre e todo o lixo no lugar); nao deito a beata ao chao; nao me vingo do recibo deitando-o ao chao.

Se a populacao do mundo pensar como eu pensava antigamente, o mundo sera cada vez mais uma imundice. Se pensar como eu penso agora, sera um lugar limpo, um lugar de respeito para com os outros, para com o mundo, logo para com o proprio individuo.
Um lugar que de tao limpo muitos nao acreditam poder existir.
Quando cheguei ao Japao, confirmei que e possivel a existencia desse lugar. As pessoas levam consigo o lixo que fazem, guardam as beatas em cinzeiros portateis. Porque afinal o lixo nao e da terra, o lixo e de quem o faz.
Quem nao acredita que e possivel e porque ainda nao visitou o Japao.

quinta-feira, outubro 04, 2007

Migração

(com erros de ortografia e pontuacao)





Não fazia ideia do quanto necessitava de ferias.
Descansar do trabalho, da metropole, da cultura japonesa. Parar.
Toquio absorve-me. Esqueco-me do resto do mundo. E estar noutra dimensao. Esqueco que o mundo deixa criancas morrer a fome, e eu faco parte desse mundo.
Em Toquio os minutos sao contados e a vida passa ao correr de cada minuto. Dou importancia ao tempo e ele esgota-se em mim. E assustador.
A cultura japonesa seca-me. Trabalhando e convivendo com japoneses torno-me eu tambem num bonsai. Amarrado as regras e a exigencia de harmonia.

Uma semana de ferias nas Filipinas facultou-me espaco e tempo – esse matrix onde achamos que respiramos. Sozinho e em silencio, caminhando na praia olhando o inacreditavel oceano, pude observar-me. Distanciei-me do meu eu no Japão e analisei-me: viver em Kagurazaka e confortavel. Habituei-me. Cai na rotina em Toquio.

Estou pronto a voltar ao Japão para mais um periodo de trabalho e olho no relogio. Levo apontado, como sempre, memorandos. Recados para mim proprio. Se tu proprio. Fala ingles sem usares o sotaque japones. Nao des tanto de ti, porque um ramo do bonsai sera cortado. Tenta distanciar-te e estar consciente dos actos. Sorrir. Disciplina. Gastar menos dinheiro em alcool. Continuar a respeitar os outros. Deixar-me ir.

Deixo-me ir…
2 de Outubro de 2007, Aeroporto de Narita 13:00
Aterro. Aos primeiros passos no aeroporto volto a escutar a tranquilidade do silencio (que no Japão tanto diz). Proxima etapa, burocracia. O poder dos governos. Uma obrigação, ou nao seremos cidadãos. Deixo-me ir.
Hesitam em carimbar o passaporte. Perguntam-me porque escrevi na ficha de desembarque que pretendo ficar por dois anos se nao tenho visto de trabalho. Explico que uma empresa me vai facultar o visto e quando o tiver inicio o trabalho. E estranho mas e verdade: ao mesmo tempo estou a mentir (porque ja trabalho para essa empresa) e a ser honesto (a empresa ia mesmo patrocinar o meu visto e assim ficaria legal).
- Devia ter emitido o visto antes de vir. , dizem-me do outro lado do balcão.
Sou levado para uma sala onde preencho um questionario em portugues. Extenso e detalhado. (Bem-vindo ao Japão )
Espero e espero. Pelo tempo e pelo sim.


Não.


O senhor da Imigração não me olha nos olhos (Bem-vindo ao Japão). Fala para o tradutor observando as suas proprias mãos. As palavras saem-lhe confiantes, e a cara so expressa trabalho. E implacavel. Frio.
- O problema de teres vindo sem visto nao e meu. O erro foi teu. Nao te posso deixar entrar. Fazes o visto e depois podes entrar.
Não aceita que lhe de explicaçoes pois sabe que não vão mudar nada. Nao me da qualquer hipotese de argumento nem permite a ele proprio qualquer relance de sentimento.
Da-me a escolher: aceitar a decisão ou recorrer ao Ministerio da Justiça (O poder dos governos).
Eu sou um reinvindicador por natureza. Reinvindico de mim proprio e sem saber porque.
Nesta situacao controlo as emoçoes e raciocino com pragmatismo. Sei bem o que significa um Não no Japão.

Sinto-me um criminoso (cometi um crime auto-infligido contra o meu proprio caminho). Tenho escolta pessoal e nao posso sair de uma area restricta do aeroporto. Onde estou? E a primeira vez que saio de um lugar onde nao cheguei a entrar.

A decisão mais barata e deixar o Japão nesse mesmo dia. Para onde? O dinheiro e um problema. Não tenho o suficiente para voltar a Portugal. Nem dinheiro nem vontade. Não e desta forma que quero regressar.





Voo novamente para a proximidade das Ilhas Filipinas. Vou esperar a burocracia.
Subita e forçadamente abandono o trilho por onde seguia. Mas o tiagointokyo continua a existir. E em Toquio que esta a minha casa, a minha roupa, as minhas camaras, os meus projectos. Eu estou la. Fui apenas deportado, transladado de mim temporariamente.


Em Manila, onde escrevo estas linhas, continuo zonzo do episodio. Ainda nao o digeri.
Espero que o tempo turve a memoria e anestesie o sentimento.

Eu nunca fui esbofeteado. Nao acredito na violencia por isso nunca levei um murro na cara. Sinto, embora, que deve doer muito menos do que a maneira como o Japão nos bate. Sem emoçoes e sem musculo. Nem sequer me tocou mas atingiu-me com muito mais violencia.



(PS: Continuarei a escrever regularmente sobre o Japão, infelizmente, sem a forca complementar das fotografias. Mas uma vantagem: estar distanciado)

quinta-feira, setembro 20, 2007

Trabalho é conhaque

Trabalho é trabalho, conhaque é conhaque.
Trabalha o conhaque depois do trabalho.
Conhaque sem trabalho dá trabalho sem conhaque.
Conhaque é trabalho, trabalho é um baralho.
Sem conhaque não há trabalho, sem trabalho não há conhaque.
Mas sem trabalho o conhaque não sabe a conhaque. Logo o conhaque sabe a trabalho.
O trabalho sabe a trabalho.
O trabalho é conhaque: Design Festa - Everyone is an artist!

sexta-feira, setembro 07, 2007

Poucas vezes se diz Sayonara em Japonês

Não gosto de despedidas. Não me considero especial por isso, pois como eu há muitos. Prefiro o até breve “gyaneee”. Com essas coordenadas fiz questão de estar presente no último jantar do compincha Pedro. Afinal ele fez questão de apadrinhar o meu primeiro jantar em terras nipónicas. E que baptismo foi. Muito mais emocionante e enriquecedor do que o com a água benta.
Na primeira noite em Tóquio fui directo à alienação de Roppongi, guiado pelo Pedro e coadjuvado por esse perigoso triângulo equilátero de álcool, japonesas e jet-lag.


Atalho sempre pela expressão “aprendo com toda a gente”. E com o Rodrigues-san aprendi muito. Via como uma fotocópia cultural de mim próprio tinha aglutinado em tão pouco tempo os valores profissionais do Japão, o aguentar samurai das emoções, e partilhei com ele essa vã tentativa de nos abstrairmos do que (não) aprendemos no princípio da vida, do peso trapalhão de nascermos portugueses. Mas aos trambolhões também se caminha.

Depois de dois anos e meio de Tóquio, o Pedro volta à Europa, crescido de ainda não tem noção de quê. O efeito nipónico é como os sismos: podemos estar a dormir no momento do abalo maior, mas à posteriori sentimos – e de que maneira – as réplicas.

Eu e o Pedro conseguimos algo que muitas pessoas não conseguem: comunicar.
Diz-me: “Depois do Japão tudo vai ser mais fácil.” Eu discordo logo de seguida (a discórdia é o baloiço da comunicação). Digo-lhe que na minha opinião o Japão só parece complicado para nós por ser tão simples. Chegar ao simples é mais complicado do que chegar ao complicado!
Dou-lhe exemplos: fui à Malásia, quero saber o preço do bilhete de autocarro e há vários preços, incertos e mutáveis de hora para hora; em Marrocos quero deixar o autocarro e sou abalroado por pessoas que não tiveram a minha oportunidade de aprender um pouco de civismo; toma cuidado em Londres caro Pedro, que um fanático embriagado pode revoltar-se barbaramente por tu seres de um país de futebol. Visto bem as coisas, é mais fácil ficar desfigurado na Europa (ou noutro lugar qualquer) do que no Japão. “Depois do Japão tudo vai ser mais fácil.”
A janela japonesa não “quer abrir”. Vai à força? Não. Tem truque. Para abrir basta um jeitosinho muito muito simples, muito japonês, pensado, não empurrado.

Um gyaneee para a única pessoa com quem nos últimos meses comuniquei no código de nascença, com o qual se escreve a palavra "amizade".

sexta-feira, agosto 31, 2007

Tudo p'rá piscina (que o Mundo vai acabar)

Calor, piscina, bóias e ondas fabricadas. Não necessito escrever mais.
O vídeo escreve por si.

No auge do exotismo até os meus colegas de trabalho, japoneses, se impressionam. Eu digo-lhes: "Vejam isto e ficam a perceber por que razão os estrangeiros se interessam pelo Japão." Aqui.

quinta-feira, agosto 23, 2007

Let's dance

Ao ritmo do shamisen, das flautas e dos tambores, a energia do matsuri percorre as ruas habituadas ao silêncio. A letra da música é repetitiva: "odoru aho ni miru aho; onaji aho nara odoranya son son!"
"É tolo aquele que dança, e é tolo aquele que observa; se ambos são tolos, o melhor é dançar!"

A música é sempre a mesma e assim ninguém perde o ritmo. O que interessa é dançar.



Dance dance dance, aqui.

quinta-feira, agosto 09, 2007

Kim e o Zoo, viagens e outros zus

Dizem que o Mundo é pequeno, e dizem bem. Então digam-me agora também, de que tamanho é a maior cidade do Mundo.
Kim ainda não é fotógrafa profissional no sentido da independência económica. Sem dúvida que é uma profissional na dedicação e talento. Diz-me que a próxima exposição já terá as fotos dos Zoos. O jardim zoológico é o seu lugar fotográfico. Há meses que percorre os Zoos da Ásia fotografando os animais, os leões tristes, os chimpanzés que observam as pessoas, o rato que aguarda a morte dentro da jaula da serpente, as crianças que alimentam os elefantes, quantos temas a explorar num só lugar? Cruzámos os nossos caminhos no Aeroporto de Narita, na fila para um embarque sudeste asiático. Dei-lhe a minha vez, porque me educaram que em primeiro estão as senhoras. Um gesto de uma educação. Para Kim, que ainda hoje brinca com o assunto, foi um acto de engate. Quando digo a Kim, por exemplo, que a sua amiga é muito bonita, Kim volta a insistir com a crónica do engate. Eu tento explicar-lhe que há uma diferença entre o engate e ser latino.

A vida é um dominó de sequências. Sucedeu que nos encontrássemos novamente na carruagem do comboio que faria a ligação Aeroporto – Estação Central de Kuala Lumpur. Eu estava de férias. Precisava de férias do Japão. Quando vi Kim entrar na carruagem as palavras saíram sem controlo, porque do espontâneo se faz o latino:

Nihonjin desu ka?” disse a mesma pessoa que precisava de férias do Japão.

Oh falas bem japonês.”, disse Kim em japonês, tal como um japonês, com surpresa.

Esforço-me.”, disse eu, antes de Kim responder finalmente à pergunta inicial: “Nasci coreana mas agora tenho passaporte japonês.” E a partir daí começámos a comunicar principalmente em inglês. Esporadicamente em japonês. Muitas vezes sem necessitar sequer de falar.

Caímos de súbito num carrossel de coincidências: ambos carregávamos o peso da paixão pela fotografia; descobrimos que somos vizinhos em Tóquio; que ambos jogamos futsal regularmente nos campos de Shinanomachi; que ambos somos uma mistura, Kim, de Coreia e Japão, eu, de Portugal e de ainda-não-sei-de-quê; e ao saber isto, no auge do carrossel, Kim reage jovial por poder finalmente conhecer um natural da terra em que ela e seu marido um dia sonham viver.

O marido de Kim sonhou um dia que era um marinheiro de Portugal dos tempo dos Descobrimentos. Sori acredita que, noutra vida, foi esse marinheiro. O seu inconsciente levou-o a pensar consciente, e juntos, Sori e Kim já visitaram por duas vezes o meu país. Adoram o vinho, o bacalhau, e o Alentejo. Logo ali, naquela carruagem transformada por momentos em carrossel, que prosseguia entre bananeiras ao vento, nos tornámos amigos. Um acto instantâneo, como tirar duas peças de um saco de puzzle e encaixarem assim, tão natural como as bananeiras ao vento.

Que foi para mim encontrar Kim? Confirmar que viajar é a melhor Universidade? Que é o lugar que nos ajuda a ajustar aos nossos desígnios? E que foi para Kim encontrar-me? Ter um jogador estrangeiro no seu clube de futsal? A certeza da ligação a Portugal? Uma motivação para alcançar o sonho do casal?

Será destino? Quantas perguntas sem resposta existem? O destino não é só uma sequência de acontecimentos? Como as peças do dominó, umas caem, outras ficam de pé. É tudo tão acidental como eu ter sido o primeiro espermatozóide a chegar ao óvulo da minha mãe.

Destino… Fatalidade. Fado. Portugal. Não é por aqui o caminho. O caminho é em frente! Há que descobrir novas peças de dominó. E Kim descobriu a sua dedicação ao Zoo. Admiro o acidente da nossa amizade e admiro muito a sua dedicação ao Zoo. É um dos seus focos.

Eu desoriento-me por ver tudo desfocado. Ainda não cheguei acolá e já mudei de rota para ali. É só isso que eu sei fazer, deixar-me ir na corrente, viajar. A tal ponto que superei o meu ídolo de infância, Willy Fog, que precisou de 80 dias para dar a volta ao Mundo. Eu só precisei de duas horas. Bastou-me ver o filme Baraka sentado no sofá.

Mas na semana passada bati de novo o meu recorde. De volta ao campo de futsal, percorri quilómetros de divertimento, viajei por entre jogadas de amizade, cheguei à Estação Central das recordações. Dia 16 de Agosto, lá estarei em casa do casal amante de Portugal, para ver o céu de Tóquio explodir de artifício, acompanhado de vinho do… Alentejo. Será mais uma viagem de muitos quilómetros.

sexta-feira, julho 27, 2007

Um gajo que se adapta

Perguntar faz bem, apesar de nem tudo tenha de ter explicação. Porque diminuiu o ritmo de me escrever aqui?
Não é porque ande ocupado. A ocupação é relativa. Há quem se ocupe no sofá invadido pela caixinha da demência. A ocupação é relativa. Comparando o meu diário com a vida de um salaryman da capital, que destrói horas todos os dias em viagens suburbanas, de pé, tentando ler o jornal... Ou tentando adormecer, descansar antes de um dia igual ao de ontem, sem tempo para fazer de marido, sem tempo para ver a filha crescer… Não posso andar ocupado. A ocupação é relativa. Há tempo para tudo, até para sobreviver.

A fonte de inspiração não secou. Musas não faltam. O que falta é entender algumas hipotenusas. O poço das ideias está cá, e ao contrário do globo, tem muita água potável. E essa água vai afogar de trabalho algumas editoras no meu país. O trabalho de não dizer sim. Ou a tarefa ainda mais árdua de não dizer sim nem não.
Será desilusão para com o Japão e sua gente? Naaaa, desilusão não é certamente. Não falta do que escrever, do que criar lixo cibernético. Se bem que no meio do entulho sempr’alguém encontra um valor a que se associa: ou à amizade, ou ao fascínio pelo hilariante, ou ao vício de ler os outros.
Dei conta de que o que tem reduzido o ritmo frenético desta minha exposição em forma de blogue foi o que se pode chamar de "fenómeno do encaixe". Do habituar-se.
Ainda bem que o meu nível de japonês é miserável, porque se não o fosse e o reflexo no espelho não olhasse para mim, ainda me convencia que me havia tornado japonês. Acontece a muitos bons estrangeiros. A vénia pega-se. Pensar em japonês é surreal mas sucede. A surrealidade do Japão também não deixa de suceder. E por navegar no meio dela me esqueço de que o Mundo lá fora, longe desta ilha amaldiçoada por pontos de interrogação, é que é o Mundo real. Onde as pessoas discutem nas ruas. Onde as pessoas discutem nas ruas sujas. Onde as pessoas discutem nas ruas sujas porque as pessoas deitam piriscas para o chão. Onde as pessoas fumam os sentimentos umas das outras. Onde o cliente é tratado como delinquente. Onde as mulheres falam como homens. Onde subir ao 47º andar não é normal. Onde não há ruas com dois sentidos para peões. Onde a desordem é a ordem.
Sou um rapaz adaptável. Um gajo que se adapta. E convenci-me que por cair na rotina do Japão ser a minha casa, sou pertença dele próprio. Como os olhos que só se abrem em viagem. Eu não conheço todos os monumentos da minha terra. E aqui já vi tudo o que há para ver. Lá estou eu convencido… nem tudo! Há que dispertar com os inconstantes beliscos psicológicos que me recordam quão verde sou de Japão.


Vou voltar ao amadurecer. Como aprendi do Japão, o que se diz que se faz, faz-se. Faz-se bem. E no momento X.
“Amanhã voltarei.“ Com um texto sobre amizades que não têm explicação. Se não voltar amanhã, foi porque bebi demais nas festas de Kagurazaka. E não serei incumpridor por isso. É apenas o sinal de que ainda estou verde de Japão.
O melhor será dizer: “Voltarei.” É mais certo. Mais japonês.

sexta-feira, julho 13, 2007

Matar o tempo a brincar às bandeirinhas

Terramoto

Hello Kitty
Giro ou Assustador
Uncle Sam wellcome to Japan

Moxi Moxi
Dragon Ball
O prego que sobressai logo será amassado
Self-portrait

Carruagem women-only
O forasteiro
Smile
Yayoi Kusama

quinta-feira, julho 12, 2007

O perfil do forasteiro

Cada vez mais japonesas casam com ocidentais. Em Tóquio, onde se concentra a maioria imigrada, é usual ver-se os novos casais a passear com o logótipo da diferença estampado no entrelaçar dos dedos.
Mas é essa diferença que torna o estrangeiro um raio de liberdade para as senhoras japonesas. Ao contrário de muitos maridos japoneses, os ocidentais não as tomam por meras empregadas e por natureza querem que as esposas avancem na carreira. Por outro lado, os ocidentais escolhem as japonesas porque, além de poder dar jeito em termos do visto, há também o importante factor do marido-ser-mais-do-que-VIP. E a beleza exótica, para o leitor desatento.

O futuro pertence aos mistos. Será um eterno cruzamento de raças até à extinção.

Há cerca de dois milhões de estrangeiros registados, um recorde que deverá continuar a ser batido de ano para ano. O Japão conquista os estrangeiros e também sua a vontade de ser estrangeiro. Criado para variar entre o cinzento claro e o cinzento-escuro, o arquipélago recebe agora cores de todas as tonalidades, que, não tendo escolha, têm de aprender a diluir-se no espectro cinza.

As portas estão abertas para professores de inglês. Qualquer cidadão do mundo que queira viver no Japão e domine a língua inglesa, só necessita de duas liberdades: a da decisão e a de comprar o bilhete de avião.

Nas fábricas ocupam-se os brasileiros. Daí que hajam Brasiltowns com restaurantes como a “Cantina Quero Mais” ou a opção português nos Multibanco. (Português brasileiro, porque para “sacar dinheiro” em Portugal não é preciso ir ao Multibanco)

O contingente chinês que oferece massaji massaji concorre com os africanos vestidos de impertinência que convidam os gravatas a ver as jovens louras no espectáculo do despir. As empregadas filipinas tratam dos filhos dos embaixadores e dos engraxadores dos embaixadores. Já os soldados americanos não são para aqui chamados.
É acessível para um ocidental conviver no Japão carregado em conversas por outros compatriotas. Mas estas pessoas nem se dão conta de que não vivem no Japão, de que nunca deixaram o Ocidente.
Para outros, de que sou exemplo, que mergulham de cabeça na cultura sem saber sequer se tem água, a relação com o Japão é como a maré. Às vezes a bandeira está verde, é o lugar perfeito, tudo limpinho e muito respeito. Mas a maré conturba-se: a diferença com que nos tratam, ao não permitir a entrada no restaurante, os esgares de revolta; a indiferença com que nos emocionam, ao permitir a longinquidade das relações, os ares de solidão.
Há muito que deixei o ocidente, mas o ocidente nunca me deixará. Faz parte de mim, sou ocidente. Mas quantos ocidentais sofrem por quererem a todo o custo ser oriente. O louro europeu de dois metros, tamanco vestido de kimono, que se orgulha de ser um ás com os pauzinhos mas não diz arigato porque do sotaque flúi um eirigueito, domina todos os saqués, faz muitas vénias e pede sempre desculpas. Pobre tamanco, a costurar o objectivo de ser considerado igual aos japoneses... Nunca o será, por mais vénias que faça e por muito bem que fale japonês.
O melhor é rir.
É o que eu faço de cada vez que os japoneses fazem ou dizem algo que me desperta a condição de forasteiro. E no final de cada riso, apercebo-me de que, no fundo, estou a rir de mim próprio.

sexta-feira, junho 29, 2007

Teorias sobre o Japão em Pinturas Mentais

Há quem diga que vivo de imagens; mas ninguém pode dizer que eu não vivo no Japão e por não haver país menos conceptual, usarei a pintura para o apresentar.

Vulcões Salaryman, aguarela
Viajo no metropolitano de Tóquio, olho em volta e, qual desvario kafkiano, os salaryman que se deslocam impávidos na rotina transformam-se de súbito em pequenos vulcões.
Desta fusão geo-humana surge um ser que controla os próprios instintos animais. Os japoneses fervilham como vulcões, mas têm o poder de manter o magma dentro deles até arrefecer. Vejo em cada salaryman um vulcão que embora não esteja extinto, não entra em erupção.

As tigelinhas de arroz, pintura a óleo
Foi também na ferro-via que se me coloriu repentinamente e sem explicação a seguinte tela de sinapses: cabe às japonesas a mesma descrição que se pode fazer à tigela de arroz branco (tão importante no quotidiano culinário). Ora, não se fica esfomeado nem muito cheio, satisfaz o suficiente; o arroz é saudável e sempre com bom aspecto, a tigela elegante e bonita; o sabor é sempre igual e difícil de distinguir, mas daí que não enjoe e seja apetecível a todas as refeições.

Biru kudasai, serigrafia
O álcool é o elixir da verdade, ninguém desconfia de um embriagado.
O povo japonês não pretende ser malicioso mesmo quando mente, o que pretende é ser simpático. E é com a potência alcoólica que o sol finalmente nasce para os japoneses poderem relaxar da formalidade da simpatia. (E os vulcões soltam a lava suavemente.)

Giro ou assustador?, acrílico
Este é um quadro de arte naíf: os japoneses simplificam a variação das suas reacções àquilo que acham muito giro e àquilo que lhes mete medo. Variam portanto entre o Kawaii! (giro) e o Kowai! (assustador). Do “a” ao “o” a diferença é mínima mas o resultado da sua utilização semântica é completamente oposto.

Estas imagens foram pintadas por mim, mas teorias há de outros olhares interessados, que fui escutando desde que meus tímpanos filtram sagazes o assunto Japão.

Peixes na água, aerografia
Donald Richie já reside em Tóquio e escreve sobre o Japão ao tempo que perfaz o dobro da minha idade. Numa entrevista-aerografia que folheei há uns meses, Richie diz que “perguntar a japoneses sobre o Japão é o mesmo que perguntar a peixes sobre a água”. Não se apercebem onde nadam nem porque o fazem, mas sabem nadar.

A caixa de comida, guache
Um neozelandês com quem conversei uma vez, deu-me a observar o seu quadro pop-art: “podemos perceber o Japão se olharmos para a caixa de comida obento, tudo está separado, ingrediente por ingrediente, nada se mistura”.

(Inspirado pela sua pintura, logo criei uma imagem sob essa influência, mas muito minimalista.
A bandeira, guache.
A bandeira do Japão, duas cores, simplicidade. O vermelho é o Sol, um círculo perfeito sobre a pureza branca.
Ali é vermelho, aqui é branco. Aqui é assim, ali não. Japão.)

Sem título, carvão
Para finalizar, uma pintura a carvão que ilustra genialmente este país, que me foi descrita por um compatriota, que havia escutado de outro compatriota.
Esta pintura é uma obra-prima, a preservar no Museu das Teorias Sobre o Japão em Pinturas Mentais. “Os japoneses são cem milhões de bonsais.” Recortados desde os rebentos, crescem deformados de personalidade, feitos para serem miniatura: o provérbio “Deru kugi wa utareru” completa esta imagem, “o prego que sobressai logo será amassado”.

(Decidi não colocar fotografias a acompanhar este texto e a razão é tão simples como a bandeira do Japão: o que se tratou neste texto foi de pinturas mentais)

quinta-feira, junho 28, 2007

Provérbio japonês

Três mulheres juntas, barulho.



Nota: na imagem seguinte estão escritas, em idioma japonês, as palavras "mulher" (primeira linha) e "barulho" (segunda linha). Ora, o primeiro caracter da palavra barulho, é formado por três mulheres juntas.





quarta-feira, junho 13, 2007

Desempregado e feliz

Estive alguns meses empregado numa empresa japonesa à séria, uma experiência enriquecedora em todos os sentidos. Até para avolumar a minha alergia ao sistema da corporação, ao mundo do em prego, ao estatuto de objecto de levar marteladas.

Agora estou desempregado cinco dias por semana na galeria do Design Festa. O meu Sábado virou Quarta-feira e o sétimo dia é à Quinta. Realizo uma daquelas fantasias de cada um, faço o que gosto e ainda me dão de comer. Nesta empresa só usa gravatas quem quiser, não pela formalidade do trabalho mas para ajustar o rigor de vestimentas extravagantes. (A gravata não trabalha por ninguém, nunca deixará de ser um pedaço de tecido.)

Usuki-san é uma chefe dos anos 70: fã incondicional de Rolling Stones, não perde um único concerto de Iggy Pop no Japão. É ela a fundadora deste espaço onde qualquer pessoa pode expressar a sua originalidade e qualquer originalidade, já que como dizia o único génio que existiu no meu país, “Viver não é necessário. Necessário é criar.” Usuki-san acreditou em mim e dá-me a liberdade para essa necessidade, daí que eu me sinta desempregado, pois não há um dia que eu acorde sem vontade de ir trabalhar.

Também para as autoridades do Japão eu estou no desemprego. É o que revela a burocracia da minha condição de visitante temporário, que expira ao fim de cada três meses e não permite auferir ordenados. É irónico ou talvez não: para andar feliz preciso de estar à margem da lei.

Em breve esgotar-se-ão os três meses, mas basta-me uma maratona de poucas horas na cidade que coroou Rosa Mota para regressar à temporalidade feliz do desemprego.

(Não significa este texto que quem o escreve domine esse tema oculto que é a felicidade. Apenas anda entretido a fazer o que gosta de fazer. A felicidade pode não andar muito longe disso.)

quarta-feira, junho 06, 2007

Hoje fiz um amigo

Cumpria um recado da chefe, fazer promoção da empresa. Na Associação de Design do Japão, fui atendido pelo Wakamaru, um menino vestido à maneira: com a camisola amarela da prova de futurismo.
Olhava-me nos olhos, abanando a cabeça, como que dizendo: "Tu és diferente". Eu li-lhe os pensamentos e comentei sozinho: "Gosto de ti por seres diferente".

Depois de o chamar pelo nome, o Wakamaru veio ligeiro colocar-se à minha frente e num japonês que, como sempre, deduzi do contexto, convidou-me a fazer alongamentos com ele. Recusei, não por antipatia ou timidez, simplesmente porque o Verão já avisou que está a chegar e a humidade é suficiente para aquecer o corpo.

Mas o Wakamaru lá fez os seus alongamentos. Espero que bem, não vá o meu novo amigo ter um estiramento muscular.

quarta-feira, maio 30, 2007

Imagens narrativas VII - Estacionar

A necessitade de espaço e o engenho de criar espaço. Mais palavras para quê...

sexta-feira, maio 25, 2007

Nas ruas de Kagurazaka

Em Kagurazaka viaja-se ao velho Japão em pleno coração de Tóquio. Este bairro é uma colina, mas se Tóquio tivesse baixa, seria aqui. O declive é a imagem de marca que faz deste local um ícone da capital.

Kagurazaka, a ladeira-do-deus-da-diversão, está repleta de ruínhas pedonais paradas no tempo. As casas tradicionais que circundam os quelhos são tratadas como bonsais, por onde deambulam em gordas boémias gatos sempre desconfiados.

Mantém a atmosfera tradicional, apesar das invasões francesas. Os expatriados francófonos escolheram este lugar para viver, presumo que pelo seu síndroma do orgulho. Não escolheram mal não senhor.

Até a banda sonora me reporta ao mundo encantado de Amélie Poulain, mas é na fábula de Kagurazaka que eu vivo acordado. Em miragens avisto guerreiros samurais, de kimono passam gueixas à minha frente... esfrego bem os olhos e apercebo-me que não é uma ilusão: nas tortuosas vielas de Kagurazaka ocultam-se as últimas gueixas da capital.

Viver é o que fazemos do nosso habitar: acordo bem-disposto com os ecos infantis que ultrapassam a janela do meu quartinho; com o circo das traquinices perante os meus olhos, tomo o pequeno-almoço; vou ao supermercado domingueiro, caminho a ladeira cima a baixo; atalho outra vez sob o candeeiro lunar, por entre ruas desertas em paz; de regresso a casa ouço o infalível Okaerinasai! de boas-vindas, que completa a viagem ao passado. A Srª e o Sr. Saito são os meus vizinhos e senhorios. Desconfio que este casal de idosa genica não sai de Kagurazaka há muito tempo. Para quê, habitam na nostalgia...

E eu, como posso sentir saudades de casa? Pois se a minha casa é aqui, na ladeira do deus da diversão.Fotografias, aqui.

quarta-feira, maio 23, 2007

Provérbio japonês

Quando a pobreza bate à porta, o amor sai pela janela.

terça-feira, maio 22, 2007

Dez diferenças entre portugueses e japoneses

Seguirei o génio de Pessoa, recorrendo a “um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender”. O objectivo é enunciar a diferença entre o povo português e japonês. Do recurso à interpretação de acontecimentos da História e à encenação de episódios, deduzirei oposições que reflictam a disparidade entre os dois povos.
Este é um exercício interminável, que evidentemente, generaliza. Mas de maneira a compreender os pormenores de excepção, que não serão referidos nesta análise, é conveniente ter uma ideia do todo. (Só depois de saber o que é o Impressionismo é que se entendem as pinceladas de Van Gogh).

Devo dar relevância à orientação cultural dos dois povos. Os portugueses, por fazerem parte da raça latina, possivelmente reagirão da mesma forma que espanhóis, brasileiros ou italianos nos episódios que narrarei em seguida. No entanto, existem comportamentos de exclusividade lusa que sobressaem aos dos latinos. Será esta proeminência portuguesa a base da contraposição ao povo japonês. Os nipónicos, por outro lado, representam uma colheita ímpar de seres humanos, que actua de forma singular. Apesar do Japão fazer parte do continente Asiático, o arquipélago e o continente seguem diferentes caminhos no estudo da antropologia.

Decidi redigir este texto por duas razões: a saliente, porque ainda não foi feito (se o foi, não tenho conhecimento); a consequente, pelo gozo de o escrever.
Atrevo-me a enfrentar o assunto sabendo que há personalidades mais conhecedoras desta temática, pelos anos de experiência vivida no Japão. Mas como do Japão levei um forte impulso na aprendizagem do que é a determinação e o atrevimento, aqui me atrevo, sem medo.

1. Começaremos então a viagem pela diferença entre lusos e nipónicos. E por iniciarmos a viagem, navegaremos de nau. Os primeiros ocidentais a chegarem ao arquipélago do Japão foram os portugueses. Nessa sua ânsia de descobrir, ou de expandir a fé ou o império, ou até de fugir, os portugueses ancoraram em todos os cantos do globo que não tem cantos: África do Sul, Índia, Brasil, Austrália.

O Japão, por seu lado, continua a ser o país do Mundo que mais tempo se isolou no seu mundo. Foi exactamente de 212 anos o período de enclausura ordenado pelo Shogunato. Neste período, o povo japonês não abandonou o território, nem isso lho era permitido. O contacto com o exterior resumia-se à presença restrita dos missionários europeus, numas ilhotas a Sul do arquipélago.

Esta é a primeira e mais notável diferença entre portugueses e japoneses: aqueles enfrentaram mares nunca dantes navegados, estes fecharam as suas portas.

A época do berço da globalização reflecte-se na cultura contemporânea de ambas as nações. Os portugueses seguem a sombra de Vasco da Gama em aventuras inusitadas pelo Mundo fora, nas quais se valem com mestria da sua ciência do desenrascanço.
Ao invés, os japoneses, que continuam isolados por milhões de gotas salgadas, viajam frequentemente em excursão, seguindo o guia, atentos ao esclarecimento histórico do Coliseu de Roma e da Torre Eiffel. As cidades onde se erguem estes monumentos são normalmente as primeiras a serem visitadas pelos turistas japoneses e para muitos dos poucos que já visitaram o exterior, o único conhecimento que têm de fora do seu país.

2. Logo no primeiro contacto com ocidentais os japoneses evidenciaram as suas hábeis capacidades de observação. Iniciaram com os portugueses a construção da fama que têm em copiar o que os outros fazem. Mais, em melhorá-lo para seu proveito.
Foi o que fizeram quando Fernão Mendes Pinto lhes apresentou a primeira arma de fogo que alguma vez haviam visto. A espingarda foi de pronto replicada em grandes quantidades, como é relatado na obra “Peregrinação”: “O fervor deste apetite e curiosidade foi dali por diante que já quando nos dali partimos, que foi dali a cinco meses e meio, havia na terra passante de seiscentas espingardas.” Além de copiar a ferramenta que sentenciou o fim dos samurais, os japoneses aproveitaram para adaptar à sua culinária a novidade introduzida pelos portugueses de fritar peixe e vegetais, que é nos dias de hoje um dos mais conhecidos e apetitosos pratos da sua culinária: tempura.

Ora, que retiraram os portugueses da cultura japonesa? Maioritariamente deslumbre. Fernão Mendes Pinto e São Francisco Xavier foram dos primeiros a narrar as suas experiências de espanto. Mas é Wenceslau de Moraes, séculos mais tarde, que se revela como o exemplo mor da admiração passiva, aquilo a que Fernando Pessoa chama de “provincianismo português”. Wenceslau escreveu e só escreveu, limitando-se a exaltar o Japão, na senda preguiçosa e tão portuguesa de pasmar do que os outros fazem.

3. A metodologia de trabalho, que é o mesmo que dizer a metodologia de viver, revela-se, como veremos, de uma diferença atroz.
Enquanto os japoneses preparam tudo ao detalhe, os portugueses seguem a filosofia laboral do “isso depois vê-se”.
Como é de calcular, em situações não esperadas, os portugueses desenvencilham-se como nenhum outro povo no Mundo. Precisamente por ser o povo que mais cria situações não esperadas. Ou seja, só por fazer do joelho a mesa de trabalho e deixar tudo para o último momento possível, é que têm imprevistos para resolver. E daí serem os mestres das soluções em cima da hora.
Os japoneses não atrasam as tarefas, pensam previamente nos hipotéticos problemas, criam um plano eficaz e seguem-se por esse plano. Ao eliminar a possibilidade de imprevistos, não têm de conjugar o verbo desenvencilhar.

4. Mas é da capacidade de improvisar que os portugueses abrem alas ao talento, ao imprevisto, àquilo a que o outro (e nem o próprio) não está à espera. Como a habilidade de Cristiano Ronaldo, de certo aperfeiçoada com treino, mas deixada desprendida para desembaraçar um momento.
Os japoneses, ao ter tudo planificado, não fazem o que não vem no plano. É este limite à irreverência que faz com que muitos comunicadores japoneses contra-cultura abandonem o seu país. São exemplos as artistas Yoko Ono e Yayoi Kusama.
Os japoneses são formados para não contestarem o sistema e se no sistema do menu não existe o produto que pretendem, nem sequer se atrevem em pensar solicitar o artigo. Nos cafés lusos improvisa-se uma bifana no pão, mesmo que não surja na lista.

5. Vejamos de seguida como os povos em estudo cuidam de dois conceitos que, inventados pelos humanos, são cada vez mais fundamentais na era da tecnologia: o tempo e o dinheiro.

Para relatar a divergência do tratamento do relógio, recorrerei a uma simples encenação: um jantar está marcado para as 20h por amigos japoneses, e outro, à mesma hora, por amigos portugueses.
Os participantes do jantar nipónico estão no local combinado às 19h55. Em caso de atraso, por dez minutos que sejam, de pronto os amigos japoneses enviam SMS de aviso pedindo muitas desculpas pelo ultraje de instantes perdidos. Nessa ocasião, quem chegou com dez minutos de atraso notificados, desculpa-se novamente envolvido em vergonha.

No jantar entre portugueses, o primeiro participante chega às 21h. E vai ter de esperar pelos outros. Às 21h30 começam a chegar aos pingos os restantes amigos. O que chegara uma hora depois do combinado, comenta: “Então isto são horas de chegar?”. Logo é refutado por uma voz esfomeada: “Oh, então se o jantar estava marcado para as 20h nunca cá está toda a gente antes das 22h”. De facto, este argumento revela um conhecimento da cultura portuguesa de grande pragmatismo. O amigo que chegou uma hora atrasado é que é o tolo.

E porque o tempo é dinheiro…

O motor que nos obriga a pagar para viver, é tratado no Japão, tal como o tempo, com muito cuidado e amparo. Nos estabelecimentos comerciais há um pequeno recipiente que serve de pombo-correio entre o cliente e o vendedor. No Japão é deselegante mostrar dinheiro em público ou desfrutar orgulhoso de ostentação.
Os portugueses, pelo contrário, tudo fazem para mostrar a pompa. Aliás, mesmo com menos poder de compra que os japoneses, conjecturo em qual dos países será superior o número de carros topo de gama por família. É importante para muitos portuguesinhos ter o melhor carro entre os vizinhos.

Ainda no cerne do cifrão, criemos outro episódio simples: num bar, é solicitada uma cerveja.
Estamos no Japão, a bebida custa 200 ienes e o cliente só tem 199. O vendedor não pode negociar o seu produto pois é-lhe tão claro como 1+1 ser 2: a cerveja está à venda por 200, e não 199. Logo, falta um iene.
No bar português, a cerveja custa dois euros. O cliente tem dois euros e trinta cêntimos, mas esconde uma moeda de cinquenta cêntimos no bolso. A ver se pega. “Só tem 1.80?”, diz o dono do bar. “Não faz mal, fica assim, paga para a próxima.”

6. Se o caro leitor chegou até estas linhas é porque o seu interesse demonstrou paciência. Comporta-se portanto como um japonês.
A expressão japonesa “gaman suru” significa suportar, ter a capacidade de sofrer, e sobretudo, de sofrer sozinho. A paciência nipónica até pode esgotar-se no interior, mas não salta pra fora.
Os japoneses esperam pacientes na fila para o restaurante. Sabem que vão ter a recompensa de estar no restaurante que está na moda. Os portugueses vão ao restaurante do lado pois a impaciência não os permite suportar o fastio de esperar. Pelo caminho bufam e vociferam, desabafam o seu balão de inquietação.

7. Encontramo-nos agora num elevador.
Na viagem até ao 12º andar estão duas pessoas que não se conhecem. Os portugueses sentem o momento como um incómodo período de silêncio e quebram o clima falando precisamente sobre o clima. “Está frio hoje mas parece que amanhã a temperatura vai subir.”
No elevador do oriente, os japoneses gozam o silêncio e respeitam os respectivos espaços de sossego. Não têm nada para dizer um ao outro, por isso não inventam conversas em que nada de novo se acrescenta.

Os portugueses verbalizam sempre que podem, mesmo sobre aquilo que não dominam (algo que se tornou famigerado na expressão “mandar bitaites”).
Pelo contrário, os japoneses, quando não sabem de um assunto, não falam. E sabem repousar no astuto lugar do silêncio.

8. Continuemos a seguir as pessoas que iam no elevador. São homens de negócios que vão para uma importante reunião de trabalho. Os senhores doutores portugueses estão atrasados. Suzuki-san e Sakamoto-san apresentam-se cordialmente antes da hora estipulada.

Na reunião japonesa todos os nomes serão sucedidos de “san”, o instrumento de comunicação no idioma japonês que significa respeito. O sufixo é usado também com as profissões (pescador-san, médico-san). Assim, qualquer pessoa é tratada por san, independente do currículo académico ou estatuto social.

Em Portugal o instrumento de comunicação está antes do nome e muitas vezes substitui o próprio nome. O título de Senhor Doutor, Doutor ou abreviadamente, Sôtor, é também independente do currículo académico ou estatuto social. Qualquer pessoa é Doutor. Até o médico é Doutor.

9. No penúltimo ponto desta exposição referir-me-ei a um fenómeno congénito à humanidade e pelo qual presente ao longo de toda a sua História: o conflito.
A história de guerra internacional do Japão cessou após a 2ª Grande Guerra, limitando-se presentemente ao actuar doméstico dos senhores de negro, a máfia yakuza. A yakuza é a única organização que conserva a lei marcial da era dos samurais. No dia-a-dia, o povo japonês evita todo e qualquer confronto, recorrendo uma vez mais ao gaman suru: aguenta o seu próprio instinto animal. Pede desculpa, ri-se ligeiramente e abandona o local de iminente discussão.

Se, como foi exemplo atrás, os portugueses abandonam uma fila para um restaurante a bufar e a vociferar, é escusado relatar como reagem em locais de possíveis conflitos.

Por isso, para concluir, servir-me-ei de um local não conflituoso para provar a distância entre portugueses e japoneses em relação ao conflito. O cenário é um meio de transporte, o comboio. Alguém observa curioso os representantes dos nativos em estudo. O olhar incómodo provoca reacções: os portugueses exclamam: “Opá tás a olhar pra onde pá?”; os japoneses fecham os olhos e descansam.

10. Como curiosidade, e porque este é o décimo e último termo de comparação, convido o leitor a verificar como é que os povos que acabam de ser caricaturados usam os dedos para contar até dez.

Os portugueses contam até dez começando no indicador da mão direita e acabando no polegar da mão esquerda. Usam duas mãos para contar até dez.

Os japoneses usam uma mão para contar até dez. Iniciam a contagem com a mão aberta, e começando no polegar até ao mindinho fecham a mão e contam cinco; o mindinho volta a abrir a mão até ao polegar e chegam ao fim da contagem até dez. E eu cheguei ao fim da demonstração da diferença entre portugueses e japoneses.

sábado, maio 19, 2007

Dicionário de japonês V - Portuguesismos

beranda - varanda
tabako - tabaco
pan - pão
botan - botão
kappa - capa
shabon - sabão
koppu - copo

terça-feira, maio 15, 2007

Mitos portugueses IV - Tóquio? Caríssimo!

A estatística não teve dúvidas em dizer-me que Tóquio é a cidade onde se mais pode pagar para viver. Mas isto não significa que seja a cidade onde menos se pode poupar para sobreviver. Porque é muito fácil – e humano – escorregar no buraco da hipérbole, proponho-me a esclarecer este deslize.

Comunicando para crianças (afinal os únicos seres humanos não convertidos em multibancos): Tóquio é a cidade do Mundo onde se atingem os máximos valores possíveis para comprar qualidade, unicidade, prestígio; todavia, do grupo das cidades mais caras do Mundo, Tóquio tem os valores mínimos mais baixos.
Em Paris ou Londres não se anda de Metro por menos de um euro, não se aluga uma casa no centro por 350 euros, nem se tem uma refeição completa de saúde por três euros a qualquer hora. Jantar fora de casa na cidade mais cara do Mundo pode sair mais barato e saudável que no país dos bitoques e panados no pão.
Existem as lojas de 100 ienes, os chocolates a 97 e a cerveja a 200. Os preços do quilo de frutas e legumes é que já são outra fruta.

Para esbanjar uma fortuna rapidamente, Tóquio! Em muitos restaurantes o salário mínimo de Portugal não chega para o almoço. A distracção, característica inerente ao turista, transporta-o no capricho de quatro letras. Mas se esbanjar já é um capricho...

No barómetro do cifrão, a segurança da qualidade é como jogar na lotaria sabendo que se vai ganhar. Mas não é aconselhável visitar Tóquio em caso de triunfo na lotaria. É possível que a conta bancária se deslumbre. Incomparavelmente Tóquio oferece mais e melhor.

sábado, maio 12, 2007

Tic-Tac-Tokyo


Peço muitas desculpas aos amantes do Japão mas neste texto vou apalpar Filosofia antes de me referir à extravagância dos primeiros raios de Sol. Pôr-me a observar atento aquilo que não entendo à minha volta é uma das consequências psíquicas de habitar este país. Iniciar uma conversa pedindo muitas desculpas também.

Desde que cheguei que a duração dos fenómenos se alterou, ou, no mínimo, a percepção que tenho dela.
Mas não é preciso viver no Japão para que o tempo que demora esperar na fila do multibanco e o tempo que foge num beijo à pessoa que nos estremece seja discrepante desse estranho compasso que é a passagem de um segundo para o outro. O relógio inventado diz que foram 2 minutos e 47 segundos. Mas para o que se sente não foi e nem pode ser medido em unidades.


Foram os sumérios que na actual praia petroamericana inventaram o sistema sexagesimal: de facto 60 segundos mudam-nos a vida. Porque a matemática diz que 60 é o mais pequeno número divisível pelos números de um a seis.
Mas os sumérios ignoravam o conceito de zero. Deviam ter tudo, até tempo para tudo. E porque os sumérios não tinham zero o tempo não pára.
Mas e quantas vezes pára na minha cabeça? Não há relógio que conte quanto tempo passou se nada se passou na suspensão do momento. O tempo não flúi por aí, acontece diferenciadamente em cada mente (não ligue ao devaneio caro leitor, que estou apenas a apalpar a FiloSofia).

O tempo, ajustado à incógnita do Sistema Solar, foi inventado para facilitar a realização da humanidade. Mas complica bastante. Especialmente nas culturas latinas em que as 20h para uns é 20h30 e para outros 21h15. No Japão mais do que em outro lugar, “time is money” e tal como o dinheiro que é tratado em manjedoura, o tempo também: 20h significa 19h55, e à hora marcada, todos estão no mesmo compasso de existência.

Brincando aos sumérios em Tóquio, sei que demoro exactamente 13 minutos de Iidabashi até Shinjuku, e que no dia 2 de Junho vou encontrar-me com amigos japoneses às 17h55 em frente ao Studio Alta. Combinámos às 18h, com quase um mês de antecedência, porque não há tempo a perder. Sobretudo na maior área metropolitana do mundo, onde milhões de relógios se intersectam. E se respeitam uns aos outros.
No arquipélago japonês até o ritmo do tic tac é distinto. É quase axiomático que se atravesse a passadeira a correr para garantir o semáforo verde em pleno Domingo. Nem há tempo a perder depois de esgotado o dia com o nó da gravata: são 22h30 de Segunda ou Terça-feira, mas há tempo para diluir o álcool até ao último comboio de ligação a casa.
Na capital passa tudo célere… As coisas duram uma estrela cadente. Mas o que passou ainda há pouco, logo parece que foi há muito.
As pessoas passam e o passado esgota-se apressado. Talvez porque o tempo é demasiado precioso para se perder no presente ou desperdiçar no futuro.
Mesmo no segundo inventado é possível recriar nele algo para fazer que não se havia feito no segundo anterior, e certamente que o tempo se alongará.
Ler o Rashomon ou visitar Okinawa, por exemplo.

terça-feira, maio 08, 2007

Dicionário de japonês IV - A mania de abreviar

rimokon - remote controller
famiresu - family restaurant
toire - toilet
burapi - Brad Pitt
digicam - digital camera
pokémon - pocket monster
anime - animation
depāto - department store
kopipe - copy paste

segunda-feira, maio 07, 2007

A história dos 47 Ronin: Uma lenda contemporânea

A lenda dos 47 Ronin é um dos mais famosos episódios que sucedeu na História do Japão. A história reflecte o código de honra do guerreiro samurai. E continua actual. No Japão, o instrumento de dedicação e compromisso com os superiores passou das katanas às gravatas. (nota: katana é uma palavra japonesa)

Mas viajemos, no calendário que limita a minha condição ocidental, a 1701…

Era uma vez o daymio Asano Naganori. Os daymio faziam parte da hierarquia mais poderosa dos senhores feudais. Asano tinha sido ordenado pelo shogunato para se preparar para a recepção dos mensageiros do Imperador em Edo, o antigo nome referente a Tóquio.

Asano recebia lições de etiqueta por parte de Kira Yoshinaka, um poderoso oficial na hierarquia liderada pelo shogun Tokugawa. A tensão entre os dois começou a subir quando Asano não ofereceu a Kira presentes que o satisfizessem. Kira não gostou de não ter sido subornado para melhor tratar Asano. De um lado, tínhamos, então, um arrogante rude corrupto, e do outro, um confucionista que por o ser, conhecia o conceito de moral. Kira, sabendo da sua superioridade hierárquica, insultava e humilhava em público Asano, até que um dia, ao chamar-lhe de selvagem camponês, Asano perdeu as nipónicas estribeiras tão difíceis de perder e atacou Kira com uma faca, ferindo-o seriamente na face.

Mas o mais grave neste descontrole não foi a contusão, mas o ataque dentro dos limites da residência do Shogun, onde qualquer tipo de violência era proibida, pelo que Asano foi obrigado a cometer suicídio no mesmo dia, por ofensa para com a autoridade. Asano, sabendo que seria decapitado se não cometesse o sepukku, cortou o próprio estômago. Após a sua morte, as suas terras foram confiscadas, a sua família arruinada e os samurais às suas ordens tornaram-se samurais sem mestre, ronin.
Asano tinha 34 anos. Antes de cometer o suicídio, escreveu, como era tradição, o seu poema da morte: “Talvez ela queira ser lembrada após a morte. A flor da cerejeira cai depressa, mas a memória da Primavera permanece."

47 dos guerreiros de Asano prometeram vingar a morte do seu mestre. Liderados por Oishi, agruparam-se em segredo para jurar a morte de Kira, sabendo, porém, que cumprida a promessa, o seu caminho era a morte. Kira, temendo represálias, fortificou a sua residência. Os 47 Ronin sabiam que para suceder teriam de esperar que este atenuasse a sua vigilância. Dispersaram-se e souberam esperar pelo momento certo. O próprio Oishi, o líder do plano de vingança, mudou-se para Kyoto para desviar atenções, onde passou a frequentar tabernas. Kira continuava amedrontado, e enviou espiões, os ninja, para observar os antigos serventes de Asano. Um certo dia, Oishi adormeceu embriagado de saqué numa rua de Kyoto. Os transeuntes riam-se e um deles, um senhor da província de Satsuma, enfurecido pelo comportamento incorrecto por parte de um samurai, pois Oishi bebia até cair em vez de vingar o seu mestre, insultou-o e pontapeou-o na cara, um insulto atroz para um samurai. Pouco tempo depois, a jovem esposa de Oishi queixou-se da sua conduta. Oishi divorciou-se dela nesse mesmo momento, e ordenou-a que partisse com os dois filhos mais novos, ficando o mais velho à sua guarda. Em consequência, Oishi comprou uma amante.

Os ninja de Kira contaram-lhe tudo, e este ficava cada vez mais convencido que estava a salvo, que os samurais de Asano eram inofensivos e não tinham coragem, e assim baixou a sua guarda. Os outros 46 samurais trabalhavam como mercadores em Edo, tendo acesso à residência de Kira, conhecendo os cantos à casa. Um dos samurais, para obter as plantas da casa, casou com a filha do construtor. Tudo isto era secretamente narrado a Oishi.

Em 1702, quando tudo estava preparado e Kira já não tinha vigília, Oishi abandonou Kyoto, fugindo aos ninja, e juntou-se ao bando num local secreto, onde renovaram a promessa de vingar o seu mestre. Na alvorada de 14 de Dezembro, durante um forte nevão, os 47 Ronin atacaram a residência de Kira Yoshinaka em Edo. Seguindo um plano niponicamente pormenorizado, dividiram-se em dois grupos, armados com katanas e kyudos (arcos). Um grupo, liderado por Ōishi, atacou o portão principal; o outro grupo, liderado pelo seu filho mais velho, invadiu a casa pelas traseiras. Um tambor tocaria como sinal de ataque simultâneo e um apito confirmaria a morte de Kira. Assim que estivesse morto, Kira seria decapitado e a sua cabeça levada para junto ao túmulo do seu mestre. Depois, os 47 Ronin entregar-se-iam esperando a sentença de morte. Oishi pedira que mulheres e crianças fossem poupadas. Enviou mensageiros para informar os vizinhos de que não eram ladrões e que apenas pretendiam assassinar Kira. Os vizinhos, que odiavam Kira, nada fizeram.

Depois de posicionados os arqueiros para evitar qualquer fuga do castelo que desse o alerta, Ōishi soou o tambor e o ataque começou. Dez dos defensores de Kira detiveram os invasores da entrada principal, mas o grupo comandado pelo filho de Oishi entrou pelas traseiras da casa. Kira, aterrorizado, escondeu-se num armário. Depois de vencerem os defensores em frente à casa, os dois grupos juntaram-se e eliminaram a restante oposição. Os que tentaram fugir para pedir ajuda foram mortos pelos arqueiros. Com isto tudo os 47 Ronin tinham já assassinado 16 e ferido 22 guardas de Kira. Mas, onde estava Kira?

Inspeccionaram a casa, mas só encontraram mulheres e crianças. Até que Oishi se apercebeu que a cama de Kira ainda estava quente, portanto não poderia estar longe. Uma nova procura mais exaustiva descortinou uma passagem para um pátio secreto, onde estavam mais dois guardas que foram vencidos e mortos. Finalmente, encontraram um homem, que atacou um dos samurais com uma faca, mas foi facilmente desarmado. Recusou-se a identificar-se mas os samurais presentes achavam que era Kira e soaram o apito. Os 47 Ronin juntaram-se e Oishi confirmou que era, de facto, Kira pois tinha a cicatriz na face resultante do ataque de Asano. Assim, Oishi ajoelhou-se, respeitando o grau hierárquico de Kira, identificou-se como um dos guerreiros de Asano que ali estava para vingar a sua morte, como um verdadeiro samurai deve fazer, e convidou Kira a morrer dignamente, por suicídio, oferecendo-lhe a mesma faca que Asano usara para se matar. Todavia, Kira permanecia calado e a tremer. Oishi deu ordem a um dos Ronin para o decapitar.

O dia nascera, e os ronin carregaram a cabeça de Kira até ao túmulo do seu mestre no templo Sengaku-ji, causando grande alvoroço pelo caminho. A novidade espalhou-se rapidamente e as pessoas saudavam-lhes pelo caminho. Chegados ao templo, os 47 Ronin lavaram a cabeça de Kira e colocaram-na em frente ao túmulo de Asano. Seguidamente, entregaram-se às autoridades. Apesar dos samurais sem dono terem seguido o código de Bushido, haviam desafiado o poder do shogunato. Como esperavam, foram sentenciados com a pena de morte, mas foi-lhes concedida a oportunidade de cometer seppuku, suicídio, em vez de serem executados como criminosos.

No dia 4 de Fevereiro de 1703, os 47 Ronin cometeram suicídio. Foram sepultados no templo de Sengaku-ji, junto a seu mestre, como era a sua vontade. Muitos admiradores da sua coragem peregrinaram até ao túmulo. Uma das pessoas foi o senhor da província de Satsuma, que pontapeara Oishi quando este estava embriagado. Em frente ao jazigo, ele pediu perdão por ter pensado que Oishi não era um verdadeiro samurai. Cometeu suicídio de seguida, tendo sido enterrado ao lado dos 47 Ronin. Algumas das esposas dos bravos samurais, também cometeram suicídio, para se juntar, honrosas, aos seus esposos.
E ninguém desta história viveu feliz para sempre.



Mas como em tudo é possível interpretar de diferentes perspectivas, o autor do “Livro do Samurai”, Yamamoto Tsunemoto, contemporâneo da história dos 47 Ronin, defende que os samurais não agiram segundo o código de honra Bushido. Questiona: que fariam os samurais se Kira falecesse por doença entre o tempo que preparavam a sua morte? Seriam vistos para sempre como cobardes e trariam vergonha ao clã Asano. Para Yamamoto, o que os ronin deveriam ter feito era atacar Kira assim que o seu mestre estivesse morto, sem se preocupar se atingiam o objectivo de o assassinar, mas assim demonstrar extraordinária coragem e determinação no ataque a Kira, e deste modo conseguir o respeito eterno do seu mestre.

Para Yamamoto, a lenda dos 47 Ronin é uma história de vingança e nunca uma história sobre o Bushido. Para mim é uma história sobre a humanidade, e por o ser está manchada de sangue.

Segundo o mesmo autor, no código do Samurai não é a vitoria que interessa, mas sim a dedicação que se demonstra. Este valor moral continua a existir no Japão actual. Nas empresas japonesas, não são os resultados que realmente importam, mas o empenho no trabalho e a deferência para com o chefe. É preferível trabalhar pouco mas estar com o chefe sempre que ele precisar do que trabalhar bem e sair da empresa assim que acabado o trabalho. O mesmo que suicidar o tempo de vida.

Há algumas décadas atrás, em plena 2ª Guerra Mundial, o código do samurai foi invocado como propaganda para incentivar os jovens japoneses, filhos do império, a enfrentar a guerra sem temer a morte. A essência do código samurai era morrer e assim se tornaram kamikazes muitos adolescentes nipónicos, obrigados a entrar num avião com gasolina só de ida de encontro aos navios americanos.
À semelhança do ataque dos 47 Ronin, o ataque kamikaze é um ataque surpresa, de acordo com as tradicionais tácticas de guerra japonesas. Mas uma surpresa repetida deixa de ser surpresa. Na 2ª Grande Guerra, acedendo às ordens dos superiores, como nas entrelinhas da lenda dos 47 Ronin, os jovens japoneses não cometeram suicídio como a História adultera. Foram, sim, mártires da obediência. No Japão uma ordem serve para ser aceite, não discutida. Aliás, samurai significa aquele que serve. E os 47 samurais agora ronin, órfãos da autoridade, serviram a vida ao seu mestre.

Mas tudo lhes correu como planeado. E o país onde o sol nasce continua a traçar tudo ao detalhe para evitar surpresas, continua a ser paciente com os pormenores, e os objectivos são cumpridos como pretendidos.
A situação da mulher é que tem vindo a alterar-se e a hierarquia dos sexos está cada vez mais contígua no Japão contemporâneo. A história do passado acarreta o futuro dos países mas o tempo é evolução, é aperfeiçoamento, e alguns valores têm vindo a alterar-se desde a época dos 47 Ronin. Alguns.