segunda-feira, janeiro 14, 2008

Os pássaros

Os japoneses não conseguem perceber porque é que os cães rosnam uns aos outros fora do Japão. É preciso ver, ver que os animais são alunos atentos do Homem. Daí os macaquinhos de imitação. Logo, apesar de em Tóquio não haver macacos à solta, se o olhar do Homem encarar o estudo da Etologia, é possível que reveja nos animais um tipo de ser humano transformado em macaquinhos de imitação que imitam seres humanos. No Japão a harmonia pressupõe a cópia.

Na selva de Tóquio não há leões à solta. Nem existe a praga da quantidade de pombos com dificuldades de contenção rectal. O que anda à solta em Tóquio é o bicho negro de bico arrogante, essa mancha escura de olhar afiado, a malvadez corpórea à escala da grande metrópole, na qual Hitchcock se inspirou para exaltar o tema do medo. Os corvos é que são os pássaros. É preciso ter-lhes muito respeitinho, que eles sabem quando estamos a olhar para eles. E olham-nos sempre desconfiados quando estamos a olhar para eles. Até há quem sofra de medriquice aguda – uma doença do foro psicológico com auto-cura – e desvie a sua rota para evitar o olhar penetrante do corvo gigante. Eles atacam mesmo. Nunca mais me esquecerei da forma como um se vingou de eu lhe tirar uma fotografia: deixou o poiso de um cabo eléctrico para fazer um voo rasante pela minha cabeça. Percebi bem o que passarão queria dizer.
E são grandes, feios e porcos. Os corvos são porcos: é nesta mistura de animais, nesta mistura do mesmo, que actua Tóquio.

Assenta-lhes tão bem o negro: são eles que nos lembram desta aparência de beleza, desta artificialidade estéril, desta vontade formatada de educação exterior; o corvo está ali, a remexer o lixo, grasnando, a avisar que tudo é falso.
É o instrumento principal da banda-sonora da cidade. Crocitam, grasnam, craaa, craaa, corvejam, estão sempre por ali, sagazes como…corvos.

No Parque Yoyogi reside uma comunidade de dezenas de milhares de espécimes. Atacam a produção de lixo constante do bairro de Shibuya, enquanto os sacos de plástico estão na rua, de madrugada. O dia recomeça, e o stress urbano esconde-se no dormitar dos passageiros do metro. Há tensão camuflada, como há entre as pessoas e os corvos. Embora não se toquem nem se falem, há ali algo por dizer: o corpo que se comprime, que se contém, põe-se em posição, de disciplina por parte do bicho, de sobrevivência por parte do corvo.

As políticas anunciam a gradual exterminação dos corvos. Mas Tóquio continuará eterna selva urbana. Os pinguins do servir capitalista, os gatos tão japoneses, doninhas em plena cidade, ratazanas submarinas, colegiais e Elvis domingueiros, trajes de Harajuku e ocidentais e, por cima de tudo isto, com uma panorâmica única, interpretando à sua maneira, sob a capa preta das interpretações, Os pássaros.